quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O Lado Bom de Ser Traída


 A Netflix estabelece tendências formulaicas para o consumo de seus assinantes. Vez ou outra, tanta demanda proporciona a criação de obras que se sobressaem à mesmice dando liberdade autoral aos seus realizadores (“Okja”, de Bong Joon-Ho, e “Roma”, de Alfonso Cuarón estão aí para provar isso), porém, no mais, acabamos com exemplares que expõem não só uma consciência problemática de narrativa e objetivo técnico, mas também um olhar preocupantemente superficial sobre os relacionamentos (e o execrável “365 Dias” está aí para provar isso também).

Fruto infelizmente mais do segundo caso que do primeiro, o longa-metragem brasileiro “O Lado Bom de Ser Traída”, dirigido por Diego Freitas, traz todo um aparato técnico que poucas produtoras no Brasil hoje, como a Netflix, são capazes de bancar –já sua cena inicial, uma espécie de perseguição de moto pelas ruas de São Paulo, é realizada com um exuberante recurso de drones e movimentos de câmera que enchem os olhos –mas, na superficialidade flagrante das dinâmicas de relacionamentos assim esboçadas, e na condução muito presunçosa e pouco criteriosa dada ao enredo (que adapta o livro de Sue Hecker) ele deve ser muito mais lembrado pelas cenas tórridas de nudez e sexo de sua belíssima protagonista (a formidável Giovanna Lancellotti) do que por quaisquer qualidades artísticas.

Babi (Giovanna) está apaixonada e tem o casamento já marcado com o noivo Caio (Micael Borges), cuja relação, no início do filme, parece ir às mil maravilhas –o sexo (como é mostrado com a sofreguidão insistente de um porn-softcore já no começo) é bom, e eles aparentemente se amam.

Todavia, a empresa de Caio passa por algumas investigações de estelionato, e o juíz que investiga a causa, o misterioso e soturno Marco (Leandro Lima) vem a ser o mesmo com quem, antes mesmo de se conhecerem, Babi já havia tido um fortuito (ainda que marcante) sonho erótico (!). Na esteira de alguns acontecimentos ora banais, ora significativos, Babi descobre uma traição de Caio, o que lhe oferece a chance de reinventar sua vida e, ao mesmo tempo, tentar estabelecer um relacionamento com Marco, embora a misteriosa (e ao que tudo indica, turbulenta) vida pessoal dele, não deixe de afetar a ligação entre os dois.

Por sua profusão é até um pouco complicado elaborar os tantos problemas que acometem a realização de Diego Freitas –que, a despeito de seus lapsos, fez bastante sucesso entre os assinantes! –em primeiro lugar, “O Lado Bom de Ser Traída” não possui um gênero definido, e isso parece não tanto deliberado, quanto resultado de uma inconstância predominante em sua história: As idas e vindas de Babi buscam um suspense na descoberta de quem Marco é de fato (mas, a falta de carisma de Leandro Lima e de profundidade nos personagens de modo geral põem tudo a perder), almejam uma dramaticidade na exposição dos sentimentos e dos relacionamentos (mas, a intenção preguiçosa de roteiro e direção parece ser mais a de registrar a tudo com uma sedutora estética publicitária do que obter veracidade e autenticidade dessa observação) e flertam com um apelativo erotismo extraído da conjugação entre tantos rostos e corpos belos (no entanto, o resultado disso, até pela repetição contumaz de cenas de sexo, é que as relações acabam tratadas com um verniz de inverossimilhança).

A verdade é que duas obras transparecem com maior força ao longo de toda duração de “O Lado Bom de Ser Traída”, e não como saudáveis referências, mas como fantasmas que a assombram: Na aproximação entre Babi e Marco, relutante (da parte dele) e injustificada, o filme remete à “9 e½ Semanas de Amor” em seus aspectos mais questionáveis, na esquisitice com que usa uma mescla de erotismo e comportamentos excêntricos para moldar um romantismo quase tóxico. E, no objetivo comercial do conteúdo sexual por si mesmo (pois, parece ser esse o apelo de público do filme, no fim das contas), “O Lado Bom de Ser Traída” faz lembrar “Cinquenta Tons de Cinza” também nas facetas em que ele mais se mostra deplorável –o retrato equivocado, degradante até, de uma dinâmica pautada pelo envolvimento sexual onde aquilo que se presume como sexo pouco tem a ver com a realidade, o que só enfatiza o egocentrismo e a apatia de seus personagens (e, em última instância, das mentes por trás do projeto também).

Indicativo da forma preocupante com que muitos expectadores de hoje podem enxergar as relações humanas, “O Lado Bom de Ser Traída” é alarmante em sua superficialidade, e enfadonho na forma falha com que aborda diversos gêneros, sua tábua de salvação –e os realizadores, de alguma forma, parecem saber disso –são as cenas ao estilo videoclip de sua estrela principal, Giovanna Lancellotti, que tira de letra a nudez e as sequências ousadas exigidas pela produção, emoldurada numa iluminação estilizada e em enquadramentos elaborados que evidenciam sua grande beleza e as curvas sedutoras de seu corpo.

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