sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Asteroid City


 As obras de Wes Anderson flertam a todo o instante com o estranhamento. Um filme seu corresponde ao caminhar sobre uma corda bamba; o grande achado em seu cinema é o equilíbrio improvável entre a queda drástica rumo à incompreensão e à esquisitice que sempre o assombram e a continuidade de dinâmicas, premissas e dramas que se preservam interessantes, emocionantes e inteligíveis graças ao seu talento. Entretanto, num ou noutro caso pode haver um escorregão –e o exemplo mais patente disso é, na filmografia de Wes Anderson, “A Vida Marinha de Steve Sizou”. À ele junta-se agora este “Asteroid City”.

Como o fizera em “O Grande Hotel Budapeste”, Anderson começa explorando uma narrativa de metalinguagem na qual o filme a se desenrolar mais afrente é, na realidade, um peça de teatro –filmada em preto & branco, na intenção de diferenciar a encenação da trama principal –cujo autor Conrad Earp (Edward Norton) e todo seu séquito de intérpretes são introduzidos ao público pela narração algo irônica e vintage do ator Bryan Cranston.

Quando a peça se iniciar –e o filme, por conta disso, adquirir cores –irá se iniciar também sua trama principal; que, numa das ironias do projeto, tem muito pouco, ou quase nada, de teatral: Asteroid City é o nome de um lugarejo que mal pode ser definido como cidade; um apanhado de instalações (um hotelzinho; uma oficina; um restaurante; um posto militar e pouco mais que isso) que, em meados da década de 1950, cercam o local onde, anos antes, um asteróide lendário caiu. E sua cratera, com todas as ênfases turísticas, se encontra lá. A câmera de Anderson explora –com sua típica observação fria e simétrica –todo esse ambiente aberto num dos primeiros takes, indicando a propriedade hiperlativa da direção de arte e da direção de fotografia, criando juntas, em conjugação, um cenário a um só tempo irreal, impressionante e paradoxalmente autêntico que se enquadraria bem numa narrativa de Federico Fellini, não fosse a pontual e infalível modernidade de suas inserções digitais.

O elenco reunido em “Asteroid City” é vasto e espetacular, daqueles que pouquíssimos diretores tem gabarito capaz de reunir num único projeto, e eles defendem, todos, personagens capturados em suas excentricidades, perplexos diante de uma tristeza a brotar de lugares inesperados. Há, por exemplo, Augie Steenbeck, vivido por Jason Schartzman, que levou os quatro filhos (um rapazinho e três garotinhas trigêmeas) para Asteroid City a fim de finalmente revelar a eles que sua mãe (vivida por Margot Robbie, numa breve cena como a atriz que a interpretaria) faleceu à três semanas (!?). Com seu carro avariado –devido à uma pane que o incompetente mecânico local (Matt Dillon) é incapaz de consertar –eles resolvem ficar por lá, à espera de seu sogro, Stanley (Tom Hanks) que, a despeito da ligeira indisposição com Augie, segue para lá de carro para resgatá-los. Existem ainda June (Maya Hawke), jovem professora tentando administrar os interesses ocasionais de seus jovens  alunos; Midge Campbell (Scarlett Johansson) dona de casa em crise cuja relação com a filha (Grace Edwards) acentua ainda mais sua predisposição à depressão; J.J. Kellog (Liev Schreiber) um turista eventual, constantemente à beira de um ataque de nervos graças às provocações do próprio filho; além de toda fauna de estudantes, pais, professores e cientistas de uma convenção científica realizada lá (a reunir rostos como Sophia Lillis, Rupert Friend, Tlida Swinton e outros); e os militares basicamente representados pelo oficial displicente e indiferente (Jeffrey Wright) e seu subalterno (Tony Revolori).

O vazio existencial estranhamente cômico de cada um desses personagens ganha um novo viés quando Asteroid City é visitada por um alienígena (Jeff Goldblum) –cuja aparição converte brevemente o filme numa animação, outra área de atuação do diretor Wes Anderson, vide o maravilhoso “Ilha dos Cachorros” –e o governo ordena que seja imposta uma quarentena. Confinados naquele espaço, todos os personagens estabelecem uma rotina por meio da qual não apenas convivem uns com os outros, mas também com suas próprias idiossincrasias –material que faz muito o gosto do diretor –sem que aquilo jamais gere, na realidade, um microcosmos: O trabalho de Wes Anderson, bem como sua visão particular de cinema e de mundo, terminam sendo pessoais e peculiares demais para que se possa estabelecer algum tipo de analogia. E quando cai a pergunta “Então sobre o quê exatamente versa o filme?” é quando os problemas de “Asteroid City” começam a se acumular de verdade.

Diferente de outros trabalhos de Wes Anderson nos quais sua sensibilidade conseguiu alcançar o público, emocionando-o ou levando-o a refletir (ou ambos), em “Asteroid City” há um distanciamento resultante, tal é a sensação de alienação que a situação mirabolante e os personagens idiossincráticos, somados, passam ao expectador. “Asteroid City” poderia ser sobre a paranóia atômica de outros tempos, numa curiosa equação com o presente, mas é deveras gaiato e caricatural para isso; poderia ser sobre a pluralidade norte-americana e de como mentalidades e posicionamentos mais nos afastam do que nos aproximam, mas é inacessível em sua insistência no alternativo. Termina sendo um trabalho modorrento e desafiador para os expectadores menos pacientes, capaz de agradar aos fãs incondicionais do diretor, e somente a eles.

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