quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Perfume - A História de Um Assassino


 Para o diretor Tom Tykwer –assim como para qualquer diretor que se revela ao mundo com um filme prontamente excepcional –foi uma tarefa muito difícil igualar o impacto e a repercussão causados por seu criativo e palpitante “Corra, Lola, Corra”. Dentre toda a sua empenhada filmografia, o filme que mais chegou perto de se equiparar ao brilhantismo daquele trabalho foi certamente “Perfume-A História de Um Assassino”, que o tempo converteu num clássico incompreendido. Um cult-movie.

Como o hábil esteta que é, a exemplo de diversos realizadores de seu mesmo período (a transição dos anos 1990 para os anos 2000), Tykwer emprega a narrativa cinematográfica a serviço da concepção de uma experiência sensorial. O crítico, escritor e filósofo Gilles Deleuze escreveu que o cinema na primeira metade do Século XX era baseado na pantomina do cinema mudo e, portanto, sua dicotomia envolvia a imagem em movimento, já na segunda metade do século, até pelo menos meados da década de 1990 (período do falecimento de Deleuze, 1995), ele escreveu que o cinema havia ganhado uma nova percepção originada de novas tendências, novas tecnologias e da transformação dos comportamentos, ele chamou tal fenômeno de a imagem-tempo. Tivesse Deleuze vivido para acompanhar a evolução do cinema nas décadas seguintes, ele provavelmente apontaria as produções, boa parte delas, a partir dali, de imagem-sensação. Esta é, acima de tudo, a proposta deste filme de Tom Tykwer.

Se “Corra, Lola, Corra” já simulava uma experiência sensorial um tanto quanto inédita naquele cinema de então (1999) com sua narrativa incessante, sua linguagem emprestada dos videogames e seus truques visuais que aproximavam o expectador do frenesi sentido pela protagonista, “Perfume” propõe uma ideia similar voltada, entretanto, ao sentido do olfato: São os cheiros, a obsessão que norteia, do início ao fim, a trajetória de Jean-Baptiste Grenouille (Ben Whishaw), o protagonista de “Perfume”, um jovem parisiense, nascido nas piores condições possíveis que, ao longo da vida, descobre a predisposição singular para perceber todos os odores à sua volta, e passa a fazer daquilo (captar a essência de um odor) um objetivo primordial.

A Paris à qual dá corpo a narrativa de Tykwer é a Paris do Século XVIII, quando noções modernas como higiene não haviam sido descobertas nem mesmo pela aristocracia –logo, a direção de fotografia, à cargo de Martin Fuhrer, se esforça para converter as percepções olfativas de toda a podridão ao redor do protagonista em percepções visuais –a saída era, portanto, refugiar-se do mau cheiro no embuste modista dos perfumes franceses. Para Jean-Baptiste, nascido numa feira de peixes, crescido no desamparo de um orfanato e instruído no trabalho escravo de um curtume, a arte da perfumaria é uma oportunidade para ascender socialmente e, principalmente, buscar pelo seu objetivo. É o produtor de perfumes Giuseppe Baldini (Dustin Hoffman) quem descobre o dom fora do comum de Jean-Baptiste e lhe dá sua grande chance vendo, ao mesmo tempo, sua loja adquirir sucesso, graças ao talento do novo pupilo.

Mas, para Jean-Baptiste produzir perfumes e fazer sucesso não basta. Ele quer encontrar um meio de capturar a essência num invólucro (para que o cheiro jamais se perca, diferente do que houve com a jovem que matou num beco em Paris, seu primeira assassinato) e para isso, conta-lhe Giuseppe, a única forma é indo para a província de Grasse, onde mestres da perfumaria ensinam a fina arte de preparar uma rara essência que reproduz os aromas mais improváveis e imperceptíveis da natureza.

Jean-Baptiste ruma para lá, decidido à extrair o odor feminino e condensá-lo numa essência preciosa e poderosa como nenhuma outra. E é assim que ele passa a procurar por mulheres que se prestem a deixá-lo besuntá-las com banha de porco, material que, ele aprende, pode capturar qualquer aroma. Como a primeira delas, uma prostituta, se recusa a colaborar, Jean-Baptiste a mata –com suas cobaias mortas, o procedimento se torna mais fácil (!) –dando origem, assim, à trilha de mortes que assombra a pequena Grasse.

As mulheres –sejam elas prostitutas, freiras, empregadas ou damas da sociedade –desaparecem para surgirem, logo depois, mortas, nuas e intactas (!), alarmando do povoado do lugar. O sensato Lorde Antoine Richis (o grande e saudoso Alan Rickman), pai da jovem Laura (Rachel Hurd-Wood, de “Peter Pan”), uma das presas em potencial de Jean-Baptiste, alerta as autoridades para necessidade de compreender o modus operandi do assassino, o que não impede novas mortes de se sucederem e, ao fim, a da própria Laura. Eventualmente, Jean-Baptiste acaba descoberto, preso e condenado à execução por tortura.

Longe de ser uma obra realista –embora até então, houvesse relativa plausibilidade no que vinha sendo contado –o filme de Tykwer assume ares apoteóticos no trecho final, quando seu melancólico serial-killer chega no instante de sua sentença, em praça pública, e vale-se dos poderes do perfume que concebeu às custas da morte de tantas jovens: Ele hipnotiza toda a multidão, levando-os ao delírio, nomeando-o um anjo inocente e, na sequência, perpetrando uma orgia à céu-aberto (!), na cena mais assombrosa de todo o filme.

Incategorizável e adaptado do romance “Das Parfum-die Geschichte eines Mörders”, de Patrick Süskind, tido por infilmável, “Perfume-A História de Um Assassino” não é necessariamente um suspense (pois, a despeito da trajetória de psicopata que relata, suas impressões de filme de arte se libertam dos grilhões de gênero), não é um drama (pois, não há em Jean-Baptiste muita humanidade para que o expectador venha a nutrir alguma emoção, não obstante a boa atuação de Ben Whishaw, e os outros personagens, Lorde Antoine e Laura, não ganham devido tempo de cena ou respaldo da narrativa) e também não é um filme de época (pois sua reconstituição é deveras arrojada demais, fantasiosa demais e peculiar demais para isso), é sim um grande trabalho de um grande diretor, voltado para as inconstâncias do ser humano, sua obsessão inapelável por elementos prosaicos e, ao fim, o quanto todas essas superficialidades o empurram para o vazio: No desfecho, tendo chego ao seu objetivo e diante da oportunidade literal de conquistar o mundo, nada mais resta à Jean-Baptiste senão encerrar deliberadamente seu destino, deixando-se devorar (!) por plebeus hipnotizados na mesma feira de peixes onde veio ao mundo.

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