Para o diretor Tom Tykwer –assim como para qualquer diretor que se revela ao mundo com um filme prontamente excepcional –foi uma tarefa muito difícil igualar o impacto e a repercussão causados por seu criativo e palpitante “Corra, Lola, Corra”. Dentre toda a sua empenhada filmografia, o filme que mais chegou perto de se equiparar ao brilhantismo daquele trabalho foi certamente “Perfume-A História de Um Assassino”, que o tempo converteu num clássico incompreendido. Um cult-movie.
Como o hábil esteta que é, a exemplo de
diversos realizadores de seu mesmo período (a transição dos anos 1990 para os
anos 2000), Tykwer emprega a narrativa cinematográfica a serviço da concepção
de uma experiência sensorial. O crítico, escritor e filósofo Gilles Deleuze
escreveu que o cinema na primeira metade do Século XX era baseado na pantomina
do cinema mudo e, portanto, sua dicotomia envolvia a imagem em movimento, já na
segunda metade do século, até pelo menos meados da década de 1990 (período do
falecimento de Deleuze, 1995), ele escreveu que o cinema havia ganhado uma nova
percepção originada de novas tendências, novas tecnologias e da transformação
dos comportamentos, ele chamou tal fenômeno de a imagem-tempo. Tivesse Deleuze vivido para acompanhar a evolução
do cinema nas décadas seguintes, ele provavelmente apontaria as produções, boa
parte delas, a partir dali, de imagem-sensação.
Esta é, acima de tudo, a proposta deste filme de Tom Tykwer.
Se “Corra, Lola, Corra” já simulava uma
experiência sensorial um tanto quanto inédita naquele cinema de então (1999)
com sua narrativa incessante, sua linguagem emprestada dos videogames e seus truques visuais que aproximavam o expectador do
frenesi sentido pela protagonista, “Perfume” propõe uma ideia similar voltada,
entretanto, ao sentido do olfato: São os cheiros, a obsessão que norteia, do
início ao fim, a trajetória de Jean-Baptiste Grenouille (Ben Whishaw), o
protagonista de “Perfume”, um jovem parisiense, nascido nas piores condições
possíveis que, ao longo da vida, descobre a predisposição singular para perceber
todos os odores à sua volta, e passa a fazer daquilo (captar a essência de um
odor) um objetivo primordial.
A Paris à qual dá corpo a narrativa de Tykwer é
a Paris do Século XVIII, quando noções modernas como higiene não haviam sido
descobertas nem mesmo pela aristocracia –logo, a direção de fotografia, à cargo
de Martin Fuhrer, se esforça para converter as percepções olfativas de toda a
podridão ao redor do protagonista em percepções visuais –a saída era, portanto,
refugiar-se do mau cheiro no embuste modista dos perfumes franceses. Para
Jean-Baptiste, nascido numa feira de peixes, crescido no desamparo de um
orfanato e instruído no trabalho escravo de um curtume, a arte da perfumaria é
uma oportunidade para ascender socialmente e, principalmente, buscar pelo seu
objetivo. É o produtor de perfumes Giuseppe Baldini (Dustin Hoffman) quem
descobre o dom fora do comum de Jean-Baptiste e lhe dá sua grande chance vendo,
ao mesmo tempo, sua loja adquirir sucesso, graças ao talento do novo pupilo.
Mas, para Jean-Baptiste produzir perfumes e
fazer sucesso não basta. Ele quer encontrar um meio de capturar a essência num
invólucro (para que o cheiro jamais se perca, diferente do que houve com a
jovem que matou num beco em Paris, seu primeira assassinato) e para isso,
conta-lhe Giuseppe, a única forma é indo para a província de Grasse, onde
mestres da perfumaria ensinam a fina arte de preparar uma rara essência que
reproduz os aromas mais improváveis e imperceptíveis da natureza.
Jean-Baptiste ruma para lá, decidido à extrair
o odor feminino e condensá-lo numa essência preciosa e poderosa como nenhuma
outra. E é assim que ele passa a procurar por mulheres que se prestem a
deixá-lo besuntá-las com banha de porco, material que, ele aprende, pode
capturar qualquer aroma. Como a primeira delas, uma prostituta, se recusa a
colaborar, Jean-Baptiste a mata –com suas cobaias mortas, o procedimento se
torna mais fácil (!) –dando origem, assim, à trilha de mortes que assombra a
pequena Grasse.
As mulheres –sejam elas prostitutas, freiras,
empregadas ou damas da sociedade –desaparecem para surgirem, logo depois,
mortas, nuas e intactas (!), alarmando do povoado do lugar. O sensato Lorde
Antoine Richis (o grande e saudoso Alan Rickman), pai da jovem Laura (Rachel
Hurd-Wood, de “Peter Pan”), uma das presas em potencial de Jean-Baptiste,
alerta as autoridades para necessidade de compreender o modus operandi do assassino, o que não impede novas mortes de se
sucederem e, ao fim, a da própria Laura. Eventualmente, Jean-Baptiste acaba
descoberto, preso e condenado à execução por tortura.
Longe de ser uma obra realista –embora até
então, houvesse relativa plausibilidade no que vinha sendo contado –o filme de
Tykwer assume ares apoteóticos no trecho final, quando seu melancólico serial-killer chega no instante de sua
sentença, em praça pública, e vale-se dos poderes do perfume que concebeu às
custas da morte de tantas jovens: Ele hipnotiza toda a multidão, levando-os ao
delírio, nomeando-o um anjo inocente e, na sequência, perpetrando uma orgia à
céu-aberto (!), na cena mais assombrosa de todo o filme.
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