quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

A Dança da Realidade


 Após a produção de “O Ladrão do Arco-Íris”, Alejandro Jodorowsky ficou 23 anos sem realizar um filme, dedicando-se mais à escrita, ao teatro e às outras artes. Contudo, durante as gravações de depoimentos para o documentário sobre “Duna”, seu longa-metragem jamais concretizado, Jodorowsky e o produtor francês Michel Seydoux (também pai da atriz Lea Seydoux) se reencontraram e uniram forças mais uma vez para uma nova empreitada no cinema, este atrevido, incomum e desconcertante “A Dança da Realidade”.

A verdade é que “La Danza de La Realidad”, o livro, trata-se de uma espécie de auto-biografia de Jodorowsky, muito ao seu jeito imaginativo, metalinguístico e exotérico. Ao transpô-lo para o cinema –mais na intenção do que no fato consumado –o resultado acabou sendo algo radicalmente distinto do livro: Um exercício anárquico, fragmentado e poético sobre a memória. Afirmar que este é o "Amarcord" de Jodorowsky não é, neste caso, nenhum eufemismo; muito do notório estilo onírico e operístico de Federico Fellini (o qual sempre teve nítidas proximidades com o de Jodorowsky) se percebe aqui.

Nascido em 1929, no Chile, na cidade de Tocopilla, assediada pelo deserto e costeada pelo mar (o que já proporciona um sem-fim de oportunidades para a vibrante fotografia de Jean-Marie Dreujou), o jovem Alejandro Jodorowsky (o pequeno Jeremias Herskovits) foi uma criança dividida entre o idealismo rude do pai (vivido pelo próprio filho de Alejandro, Brontis Jodorowsky) ateu e stalinista ferrenho, e o carinho agregador da mãe (vivida pela adorável Pamela Flores). Na verve poética e na imaginação indomada de Jodorowsky, contudo, essas figuras reais, e as lembranças que protagonizam, ganham uma transfiguração surrealista que afasta tudo do possivelmente real, aproximando essa obra, por consequência, de toda a simbólica e singular filmografia de seu realizador. Assim sendo, seu pai, um fervoroso questionador do presidente e ditador Carlos Ibanez del Campo (lá pelas tantas, ele chega à perpetrar uma estapafúrdia tentativa de assassinato), se converte (à exemplo de muitos outros pais) num ditador reacionário, dentro de sua própria casa, aos olhos do filho pequeno oprimido, enquanto que sua mãe, toda amor e acolhimento, transforma-se numa personagem insólita, feita de graça e liberdade poética –ela se expressa, o filme todo cantando ao invés de falar, convertendo todas as cenas em que aparece, numa espécie de musical (!).

Se o retrato executado por Steven Spielberg dos próprios pais, em “Os Fabelmans”, parece ousado, o expectador se espantará com o que, aqui, Alejandro Jodorowsky realiza: O pai surge irascível, violento e irredutível, ainda que supino e altivo, unindo muitas vezes, numa mesma personalidade, facetas masculinas a inspirar tanto ódio, quanto admiração; a mãe é etérea, bela e apaixonante, sinalizando sem restrições a um Complexo de Édipo –não por acaso, Pamela Flores surge nua em vários momentos do filme; como na embriagante sequência em que ela e o filho reencenam um conto de fadas, ela totalmente despida de roupas (!), no papel de princesa. Entretanto, a cena mais emblemática desses dois personagens, mãe e pai, enquanto protagonistas absolutos das reminiscências mostradas aqui (relegando o próprio menino Alejandro ao segundo plano), é quando o pai, todo machucado e abalado após ser libertado por rebeldes de uma interminável sessão de tortura nas mãos de militares, recebe os cuidados muito particulares da mãe, que urina em seu corpo ferido (uma cena real!) fazendo-o se restabelecer.

Aqui e ali, o próprio Alejandro Jodorowsky em pessoa comparece, muito mais do que somente um narrador das cenas, mas também uma aparição que se manifesta nas cenas, para comentá-las e sublinhar com ainda mais ênfase o viés poético que ele agrega às memórias de infância e aos acontecimentos ora prosaicos, ora retumbantes que o tornaram quem é: A perda da fé em ícones; o gradual desencanto com a religião e a fé; o turbilhão de temores infantis e desventuras; os amigos de confiança; as desilusões com o amor e com as figuras de autoridade; a sombra discriminatória das origens judaicas, tudo isso, centralizando a presença temerosa do pai em certa oposição ao amor incondicional da mãe.

Albergando a maior parte da infância e adolescência de Jodorowsky, “A Dança da Realidade” é a primeira parte de um projeto ainda não concluído de cinco filmes nos quais o realizador fez planos de relatar, à sua maneira muito particular, os percalços de sua vida sob um prisma de possibilidades artísticas infinitas; à ele, segue-se o igualmente notável e mágico (ainda que já não tão cativante) “Poesia Sem Fim” que trata da juventude de Jodorowsky e início de sua vida adulta quando se desvencilha dos pais.

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