Após a produção de “O Ladrão do Arco-Íris”, Alejandro Jodorowsky ficou 23 anos sem realizar um filme, dedicando-se mais à escrita, ao teatro e às outras artes. Contudo, durante as gravações de depoimentos para o documentário sobre “Duna”, seu longa-metragem jamais concretizado, Jodorowsky e o produtor francês Michel Seydoux (também pai da atriz Lea Seydoux) se reencontraram e uniram forças mais uma vez para uma nova empreitada no cinema, este atrevido, incomum e desconcertante “A Dança da Realidade”.
A verdade é que “La Danza de La Realidad”, o
livro, trata-se de uma espécie de auto-biografia de Jodorowsky, muito ao seu
jeito imaginativo, metalinguístico e exotérico. Ao transpô-lo para o cinema
–mais na intenção do que no fato consumado –o resultado acabou sendo algo
radicalmente distinto do livro: Um exercício anárquico, fragmentado e poético
sobre a memória. Afirmar que este é o "Amarcord" de Jodorowsky não é,
neste caso, nenhum eufemismo; muito do notório estilo onírico e operístico de
Federico Fellini (o qual sempre teve nítidas proximidades com o de Jodorowsky)
se percebe aqui.
Nascido em 1929, no Chile, na cidade de
Tocopilla, assediada pelo deserto e costeada pelo mar (o que já proporciona um
sem-fim de oportunidades para a vibrante fotografia de Jean-Marie Dreujou), o jovem
Alejandro Jodorowsky (o pequeno Jeremias Herskovits) foi uma criança dividida
entre o idealismo rude do pai (vivido pelo próprio filho de Alejandro, Brontis
Jodorowsky) ateu e stalinista ferrenho, e o carinho agregador da mãe (vivida
pela adorável Pamela Flores). Na verve poética e na imaginação indomada de
Jodorowsky, contudo, essas figuras reais, e as lembranças que protagonizam,
ganham uma transfiguração surrealista que afasta tudo do possivelmente real,
aproximando essa obra, por consequência, de toda a simbólica e singular
filmografia de seu realizador. Assim sendo, seu pai, um fervoroso questionador
do presidente e ditador Carlos Ibanez del Campo (lá pelas tantas, ele chega à
perpetrar uma estapafúrdia tentativa de assassinato), se converte (à exemplo de
muitos outros pais) num ditador reacionário, dentro de sua própria casa, aos
olhos do filho pequeno oprimido, enquanto que sua mãe, toda amor e acolhimento,
transforma-se numa personagem insólita, feita de graça e liberdade poética –ela
se expressa, o filme todo cantando ao invés de falar, convertendo todas as
cenas em que aparece, numa espécie de musical (!).
Se o retrato executado por Steven Spielberg dos
próprios pais, em “Os Fabelmans”, parece ousado, o expectador se espantará com
o que, aqui, Alejandro Jodorowsky realiza: O pai surge irascível, violento e
irredutível, ainda que supino e altivo, unindo muitas vezes, numa mesma
personalidade, facetas masculinas a inspirar tanto ódio, quanto admiração; a
mãe é etérea, bela e apaixonante, sinalizando sem restrições a um Complexo de
Édipo –não por acaso, Pamela Flores surge nua em vários momentos do filme; como
na embriagante sequência em que ela e o filho reencenam um conto de fadas, ela
totalmente despida de roupas (!), no papel de princesa. Entretanto, a cena mais
emblemática desses dois personagens, mãe e pai, enquanto protagonistas
absolutos das reminiscências mostradas aqui (relegando o próprio menino
Alejandro ao segundo plano), é quando o pai, todo machucado e abalado após ser
libertado por rebeldes de uma interminável sessão de tortura nas mãos de
militares, recebe os cuidados muito particulares da mãe, que urina em seu corpo
ferido (uma cena real!) fazendo-o se restabelecer.
Aqui e ali, o próprio Alejandro Jodorowsky em
pessoa comparece, muito mais do que somente um narrador das cenas, mas também
uma aparição que se manifesta nas cenas, para comentá-las e sublinhar com ainda
mais ênfase o viés poético que ele agrega às memórias de infância e aos acontecimentos
ora prosaicos, ora retumbantes que o tornaram quem é: A perda da fé em ícones;
o gradual desencanto com a religião e a fé; o turbilhão de temores infantis e
desventuras; os amigos de confiança; as desilusões com o amor e com as figuras
de autoridade; a sombra discriminatória das origens judaicas, tudo isso,
centralizando a presença temerosa do pai em certa oposição ao amor
incondicional da mãe.
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