Desde “A Favorita”, houve uma ligeira mudança no cinema de Yorgos Lanthimos. Ele se tornou mais acessível, mais comercial, ainda que preservasse uma aura diferenciada de estranheza –uma junção que, naquele caso e neste daqui, fascinou muito mais em relação às suas obras anteriores voltadas à atroz inadequação do ser humano e as consequências trágicas de seu desencaixe com o mundo.
Existe uma observação subliminar assim em “Pobres
Criaturas”, no entanto, este filme surpreende e encanta como nenhum outro antes
perpetrado pelo realizador de “O Sacrifício do Cervo Sagrado”.
“Pobres Criaturas”, adaptado do livro de
Alasdair Gray, é um reaproveitamento da premissa de “Frankenstein”, onde um
cientista maluco dá vida à uma criatura reavivando um corpo outrora cadavérico.
O cientista maluco em questão é o Dr. Godwin Baxter (Willien Dafoe, com o rosto
transfigurado por impressionante maquiagem) e sua criatura, uma mulher suicida
que se achava grávida (!), retorna a vida, digamos assim, com o cérebro
transplantado da criança que esperava em seu útero (!!).
Batizada de Bella Baxter (vivida com um
minimalismo primoroso por Emma Stone), o produto de sua experiência tem a
aparência e o corpo de uma bela mulher adulta, mas a mente propensa a aprender
de uma criança em desenvolvimento. A fim de acompanhar com mais detalhamento
esse progresso, o Dr. Baxter –que, ao longo da trama, não esconde de ninguém
seu complexo de Deus, chegando a insistir no apelido God (Deus) como um
diminutivo de duplo sentido de Godwin –recruta o jovem cirurgião Max McCandles
(o humorista Ramy Youssef) para que registre os avanços físicos e psicológicos
de Bella desde a estaca zero.
Entretanto, não tarda a Bella, despida das
restrições comportamentais impostas pela sociedade, descobrir anseios muito
pessoais e, de certa forma, também muito universais: Ela quer sair para o mundo
e descobrí-lo, ciente de que há muito mais para além das janelas da mansão onde
logo se descobre prisioneira. A chance para tal intento surge na figura de
Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), um advogado escroque e labioso que a convence
a partir em viagem junto dele.
Bella parte, prometendo um dia voltar e
desposar Max, porém, as circunstâncias não a impedem de experimentar, durante
todo o primeiro trecho da viagem, intensas rodadas de sexo com Duncan –e é
realmente surpreendente a entrega de Emma Stone à essa sucessão de cenas
ousadas. Juntos, eles vão para Lisboa –onde Bella se depara com a conduta de
boas maneiras a se chocar com sua predisposição livre e sem amarras –e de lá,
para um navio com destino à Athenas –no qual as primeiras fissuras na relação
com Duncan começam a aparecer –e, depois, em Alexandria –onde Bella conhece a
Sra. Von Kurtzroc (a veterana Hanna Schygulla) e seu acompanhante Harry Astley
(Jerrod Carmichael, de “O Artista do Desastre”) que lhe abrem os olhos para a
filosofia, a ambiguidade moral e as celeumas incuráveis do mundo –para então,
mais tarde, quando o dinheiro se esvai completamente, ela e Duncan serem
deixados ao léu em Paris.
Neste ponto, quando a relação com Duncan já
deteriorou de tal forma que o fulgor sexual do princípio se converteu num
turbilhão imaturo de ressentimentos da parte dele, Bella toma a decisão sem
quaisquer preconceitos de contornar a falta de dinheiro trabalhando como
prostituta –ocupação que, em sua indiferença para com valores morais
irrelevantes, ela via como algo absolutamente normal.
Essa mescla desigual de características
realizada por Lanthimos, tais como visual estilizado e arrojado (na magnífica
fotografia de Robbie Ryan, entre outras coisas, o filme em preto & branco
adquire cores a partir do momento em que Bella inicia sua jornada mundo afora),
argumento desconcertante e personagens a um só tempo pouco usuais e tratados
com insuspeita profundidade (temos a sutil transformação de Duncan, de um
confiante cafajeste para um homem frustrado e ressentido; a serenidade
gradualmente encantadora do sempre apaixonado Max; e a revelação do grotesco
Dr. Godwin Baxter, das experiências hediondos que sofreu na mão do próprio pai,
o que transforma um personagem inicialmente vilanesco num indivíduo machucado e
identificável), tudo isso não tarda a trazer à memória o efervescente cinema de
Peter Greenaway, no qual também as imagens assombrosas (a lembrar obras de arte
da pintura) emolduram tramas que questionam, através do despojamento das cenas
de sexo e do despudor de comportamentos fora dos padrões, as condutas
hipócritas de nosso mundo.
No trecho final, a jornada de Bella Baxter para
além de um mundo desconhecido e de volta a confronta com uma outra jornada,
desta vez mais íntima, onde ela toma conhecimento de sua vida anterior ao
suicídio, o que ressalta o grande trabalho executado pelo roteiro (de Tony
McNamara) e o brilhante arco dramático de amadurecimento embutido na perspicaz
interpretação de Emma Stone.
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