Steven Spielberg cresceu em uma família amorosa ainda que disfuncional e cheia de seus próprios contratempos. Filmes como “Louca Escapada” ou “E.T. O Extraterrestre” evidenciam, em pequenos detalhes aqui e ali, as inquietações de nível pessoal que sempre o perseguiram –o distanciamento paterno; a opressão acarretada pela realidade adulta; a fuga sempre imaginativa para um refúgio de fantasia; a visão aventuresca com a qual usava o cinema para romantizar a vida. A gênese de cada uma dessas facetas pode ser contemplada e apreciada agora que Steven Spielberg pôde realizar seu filme mais pessoal, “Os Fabelmans”, no qual ele compartilha com o público um pouco de sua própria história.
Conhecemos assim o personagem que representa o
próprio Spielberg, Sammy Fabelman, aos sete anos de idade, prestes a entrar num
cinema pela primeira vez, junto de seus pais, Burt (Paul Dano) e Mitzi
(Michelle Williams), para assistir a “O Maior Espetáculo da Terra”. Metódico,
Burt explica ao pequeno Sammy toda a mecânica que envolve o cinematógrafo,
enquanto que Mitzi, de uma irreprimível veia artística, enxerga ali a
materialização dos sonhos; o protagonista mal sabe, mas sua índole será definida
pelo ajuste emocional dessas duas influências aparentemente tão distintas.
Imediatamente capturado pela sequência onde uma
colisão de trem leva vários vagões a descarrilar dos trilhos, o pequeno
Fabelman pede de presente, fascinado, um trem de brinquedo, para poder
reencenar várias e várias vezes aquele momento de colisão. Contudo, Burt não
deseja ver o filho destruir um brinquedo que ele poupou para comprar. A saída,
bolada por Mitzi, é filmar o descarrilamento de brinquedo, e tê-lo gravado em
película para vê-lo e revê-lo sem parar. E é nesse detalhe, a repetição de uma
memória feliz reproduzida em cores vivas e num processo tecnológico palpável,
que se encontra o cerne da grande paixão do pequeno Fabelman.
Incapaz de olhar o mundo a não ser pela lente
de uma câmera, Sammy (então interpretado por Gabriel LaBelle) passa o restante
de sua juventude fazendo filmes caseiros, inicialmente tendo suas irmãs como
protagonistas de suas produções –que variam de comédias sobre dentistas até
filmes de horror com múmias feitas a partir do papel higiênico de casa (!) –e
mais tarde, arregimentando até mesmo os colegas de classe e seus amigos do
grupo de escoteiros.
É através do cinema que Sammy descobre uma
identidade que o define, mas é também através dele que os primeiros rancores
com a vida adulta são revelados: Num filme gravado aleatoriamente, Sammy flagra,
sem querer, Mitzi junto de Bennie (Seth Rogen), um grande amigo de seu pai. A
descoberta do adultério da mãe é um choque tamanho para Sammy que, quando a
família se muda do Arizona para a Califórnia, ele decide abandonar em
definitivo o hábito de filmar.
Ainda assim, o cinema persiste no caminho do
jovem Fabelman: Ele tem a oportunidade de realizar um filme tradicional para o
evento anual da formatura, no qual deposita toda sua habilidade e talento,
mesmo que com os aspectos pessoais da vida entrando numa espécie de colapso:
Mitzi, à essa altura, já não suporta mais o afastamento de Bennie e pede o
divórcio à Burt, enquanto que os valentões da escola, sabendo das origens
judaicas de Sammy, o acuam de todas as formas.
Se percebemos, nessa terna e delicada
trajetória familiar, que o pendor artístico e o fascínio pelo processo
criativo, Sammy puxou de Mitzi, notamos também que o minimalismo técnico e a
obsessão profissional, ele puxou de Burt, não apenas isso, é o caminho de altos
e baixos vivenciados por seu amor (pois, apesar de tudo, do início ao fim, eles
nunca deixam de se amar) que define a visão pueril, ligeiramente sombria para
com as harmonias familiares, que irá determinar o cineasta que ele virá a ser.
Para aqueles pouco inteirados da trajetória de
Spielberg como diretor de cinema, “Os Fabelmans” significará bem pouco, e fará
sentido menos ainda; esta é uma obra muito pessoal, feita para materializar uma
história sobre pessoas imperfeitas que se dispuseram a construir uma família
presumidamente perfeita, e no processo, moldaram um dos maiores gênios do
cinema de todos os tempos.
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