terça-feira, 4 de abril de 2023

Os Fabelmans


 Steven Spielberg cresceu em uma família amorosa ainda que disfuncional e cheia de seus próprios contratempos. Filmes como “Louca Escapada” ou “E.T. O Extraterrestre” evidenciam, em pequenos detalhes aqui e ali, as inquietações de nível pessoal que sempre o perseguiram –o distanciamento paterno; a opressão acarretada pela realidade adulta; a fuga sempre imaginativa para um refúgio de fantasia; a visão aventuresca com a qual usava o cinema para romantizar a vida. A gênese de cada uma dessas facetas pode ser contemplada e apreciada agora que Steven Spielberg pôde realizar seu filme mais pessoal, “Os Fabelmans”, no qual ele compartilha com o público um pouco de sua própria história.

Conhecemos assim o personagem que representa o próprio Spielberg, Sammy Fabelman, aos sete anos de idade, prestes a entrar num cinema pela primeira vez, junto de seus pais, Burt (Paul Dano) e Mitzi (Michelle Williams), para assistir a “O Maior Espetáculo da Terra”. Metódico, Burt explica ao pequeno Sammy toda a mecânica que envolve o cinematógrafo, enquanto que Mitzi, de uma irreprimível veia artística, enxerga ali a materialização dos sonhos; o protagonista mal sabe, mas sua índole será definida pelo ajuste emocional dessas duas influências aparentemente tão distintas.

Imediatamente capturado pela sequência onde uma colisão de trem leva vários vagões a descarrilar dos trilhos, o pequeno Fabelman pede de presente, fascinado, um trem de brinquedo, para poder reencenar várias e várias vezes aquele momento de colisão. Contudo, Burt não deseja ver o filho destruir um brinquedo que ele poupou para comprar. A saída, bolada por Mitzi, é filmar o descarrilamento de brinquedo, e tê-lo gravado em película para vê-lo e revê-lo sem parar. E é nesse detalhe, a repetição de uma memória feliz reproduzida em cores vivas e num processo tecnológico palpável, que se encontra o cerne da grande paixão do pequeno Fabelman.

Incapaz de olhar o mundo a não ser pela lente de uma câmera, Sammy (então interpretado por Gabriel LaBelle) passa o restante de sua juventude fazendo filmes caseiros, inicialmente tendo suas irmãs como protagonistas de suas produções –que variam de comédias sobre dentistas até filmes de horror com múmias feitas a partir do papel higiênico de casa (!) –e mais tarde, arregimentando até mesmo os colegas de classe e seus amigos do grupo de escoteiros.

É através do cinema que Sammy descobre uma identidade que o define, mas é também através dele que os primeiros rancores com a vida adulta são revelados: Num filme gravado aleatoriamente, Sammy flagra, sem querer, Mitzi junto de Bennie (Seth Rogen), um grande amigo de seu pai. A descoberta do adultério da mãe é um choque tamanho para Sammy que, quando a família se muda do Arizona para a Califórnia, ele decide abandonar em definitivo o hábito de filmar.

Ainda assim, o cinema persiste no caminho do jovem Fabelman: Ele tem a oportunidade de realizar um filme tradicional para o evento anual da formatura, no qual deposita toda sua habilidade e talento, mesmo que com os aspectos pessoais da vida entrando numa espécie de colapso: Mitzi, à essa altura, já não suporta mais o afastamento de Bennie e pede o divórcio à Burt, enquanto que os valentões da escola, sabendo das origens judaicas de Sammy, o acuam de todas as formas.

Se percebemos, nessa terna e delicada trajetória familiar, que o pendor artístico e o fascínio pelo processo criativo, Sammy puxou de Mitzi, notamos também que o minimalismo técnico e a obsessão profissional, ele puxou de Burt, não apenas isso, é o caminho de altos e baixos vivenciados por seu amor (pois, apesar de tudo, do início ao fim, eles nunca deixam de se amar) que define a visão pueril, ligeiramente sombria para com as harmonias familiares, que irá determinar o cineasta que ele virá a ser.

Para aqueles pouco inteirados da trajetória de Spielberg como diretor de cinema, “Os Fabelmans” significará bem pouco, e fará sentido menos ainda; esta é uma obra muito pessoal, feita para materializar uma história sobre pessoas imperfeitas que se dispuseram a construir uma família presumidamente perfeita, e no processo, moldaram um dos maiores gênios do cinema de todos os tempos.

Spielberg dirige o filme com bom humor, despido de amargura –até mesmo o personagem de Seth Rogen ganha um retrato carinhoso –e plenamente disposto a exorcizar quaisquer fantasmas de seu passado e de sua vida em família. Consegue realizar uma obra delicada e sincera sobre o poder transformador do cinema que, apropriadamente, se encerra no encontro mítico dele (Spielberg) com um dos maiores diretores norte-americanos de todos os tempos –John Ford, cujo “Depois do Vendaval” Spielberg tão bem homenageou numa cena de “E.T.” –a quem o diretor Spielberg coloca em cena interpretado por um dos grande diretores vivos da atualidade (senão o maior), o incomparável David Lynch.

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