sábado, 4 de maio de 2024

A Última Dança de Salomé


 Datado de 1988, “A Última Dança de Salomé” é uma das experimentações perpetradas pelo diretor inglês Ken Russell ao longo de sua carreira. Um inconformista nato, Russell sempre almejou unir a arte, e até o intelectualismo em suas mais elitizadas expressões, à um cinema indomado e incontido feito para escandalizar. Não à toa, ele moldou biografias audaciosas, musicais de arroubos intratáveis e produções que dificilmente agradavam público e crítica num primeiro momento. “A Última Dança de Salomé” une referências literárias pouco usuais (a vida de Oscar Wilde e sua controversa versão de “Salomé”) a um formato desafiador, quase vulgar, dentro do qual se expressa um cinema visivelmente apaixonado pelas engrenagens criativas da música e da dança.

Numa noite do ano de 1892, justamente durante das comemorações do Dia de Guy Fawkes (o conspirador da pólvora que serviu de inspiração ao personagem de “V de Vingança”), o escritor Oscar Wilde (Nickolas Grace, de “Tom & Viv” e “Z-A Cidade Perdida”) chega em um bordel de classe alta, levado até lá por seu amante, Lorde Alfred ‘Bosie’ Douglas (Douglas Hodge, de “Operação Red Sparrow”). Em meio à despudorada balbúrdia local, é claro que o anfitrião, o pernicioso cafetão Taylor (Stratford Johns, de “Dançando Com Um Estranho”), junto das demais prostitutas trabalhando nas dependências, com a devida cumplicidade de Bosie, planejam uma grande surpresa: Uma encenação da peça “Salomé”, do próprio Wilde, então banida dos palcos da Inglaterra pelas autoridades vigentes devido ao seu alto teor de controvérsia.

Na peça que se sucede –na qual Bosie interpreta João Batista; Taylor interpreta Heródes; e as prostitutas Lady Alice (Glenda Jackson, atriz assídua nas obras de Russell) e Rose (a estranhamente sensual Imogen Millais-Scott) interpretam respectivamente Herodias e Salomé –acompanhamos a história de origem bíblica na qual João Batista, em função do seu celibato não cede às provocações da insinuante Salomé. Acometida de profundo desdém para com a postura do homem religioso, Salomé impõe um dilema ao rei Heródes, seu padrasto (!), valendo-se do desejo que ele não esconde por ela: Uma dança final e avassaladora, ao fim da qual ela poderá exigir, sem direito à recusa, a cabeça de João Batista numa bandeja!

O desfecho terrível e inapelável de João Batista na peça de Wilde –como de certa forma o desfecho do próprio Wilde, reservado no final inesperado –remete à inevitabilidade trágica de outro grande e polêmico trabalho de Russell, o inquestionavelmente perturbador “Os Demônios”, no qual Russell também conduz seu protagonista às consequências mais extremas acarretadas por quem cede aos seus próprios caprichos.

A medida que a peça clandestina progride, adornada de uma contagiante cacofonia visual recheada de dança flamenca, luzes difusas e decoração meticulosa, a narrativa de Ken Russell flagra instantes aqui e ali dos bastidores, onde vemos um jogo de sedução volátil e ambivalente criando corpo entre o irreprimível Wilde, um dos jovens rapazes da plateia e o próprio (e enciumado) Bosie –e essa justaposição entre os arquétipos desempenhados em seus papéis e a natureza imprevisível de quem esses personagens realmente são na realidade, confere brilhante observação a esta tumultuada farsa de Ken Russell sobre os vícios, as fraqueza, e os desejos humanos, orquestrada com um primor insuspeito, francamente ameaçado de passar despercebido (como aliás aconteceu de fato com este e com muitos outros trabalhos de Russell) por se esconder atrás de uma muralha de despudor e vulgaridade irrestrita.

Destaca-se, nesta realização um tanto incategorizável, as atuações tão memoráveis quanto extravagantes de Stratford Johns e Imogen Millais-Scott, capturados em monólogos cheios de energia e duplo sentido –ainda que, vez ou outra, essa circunstância incontornavelmente teatral possa exacerbar a paciência do expectador –e sua contundente analogia entre o valor intrínseco da arte, a corrupção insidiosa, porém, sedutora da libertinagem e o limiar do repulsivo e do ultrajante nas sensibilidades de uma época assim registrada (certamente o cinema de Russell, não somente este filme aqui, foi grande influência para o “Babilônia”, de Damien Chazelle).

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