Datado de 1988, “A Última Dança de Salomé” é uma das experimentações perpetradas pelo diretor inglês Ken Russell ao longo de sua carreira. Um inconformista nato, Russell sempre almejou unir a arte, e até o intelectualismo em suas mais elitizadas expressões, à um cinema indomado e incontido feito para escandalizar. Não à toa, ele moldou biografias audaciosas, musicais de arroubos intratáveis e produções que dificilmente agradavam público e crítica num primeiro momento. “A Última Dança de Salomé” une referências literárias pouco usuais (a vida de Oscar Wilde e sua controversa versão de “Salomé”) a um formato desafiador, quase vulgar, dentro do qual se expressa um cinema visivelmente apaixonado pelas engrenagens criativas da música e da dança.
Numa noite do ano de 1892, justamente durante
das comemorações do Dia de Guy Fawkes (o conspirador da pólvora que serviu de
inspiração ao personagem de “V de Vingança”), o escritor Oscar Wilde (Nickolas
Grace, de “Tom & Viv” e “Z-A Cidade Perdida”) chega em um bordel de classe
alta, levado até lá por seu amante, Lorde Alfred ‘Bosie’ Douglas (Douglas Hodge,
de “Operação Red Sparrow”). Em meio à despudorada balbúrdia local, é claro que
o anfitrião, o pernicioso cafetão Taylor (Stratford Johns, de “Dançando Com Um
Estranho”), junto das demais prostitutas trabalhando nas dependências, com a
devida cumplicidade de Bosie, planejam uma grande surpresa: Uma encenação da
peça “Salomé”, do próprio Wilde, então banida dos palcos da Inglaterra pelas
autoridades vigentes devido ao seu alto teor de controvérsia.
Na peça que se sucede –na qual Bosie interpreta
João Batista; Taylor interpreta Heródes; e as prostitutas Lady Alice (Glenda
Jackson, atriz assídua nas obras de Russell) e Rose (a estranhamente sensual
Imogen Millais-Scott) interpretam respectivamente Herodias e Salomé –acompanhamos
a história de origem bíblica na qual João Batista, em função do seu celibato
não cede às provocações da insinuante Salomé. Acometida de profundo desdém para
com a postura do homem religioso, Salomé impõe um dilema ao rei Heródes, seu
padrasto (!), valendo-se do desejo que ele não esconde por ela: Uma dança final
e avassaladora, ao fim da qual ela poderá exigir, sem direito à recusa, a
cabeça de João Batista numa bandeja!
O desfecho terrível e inapelável de João
Batista na peça de Wilde –como de certa forma o desfecho do próprio Wilde,
reservado no final inesperado –remete à inevitabilidade trágica de outro grande
e polêmico trabalho de Russell, o inquestionavelmente perturbador “Os Demônios”,
no qual Russell também conduz seu protagonista às consequências mais extremas
acarretadas por quem cede aos seus próprios caprichos.
A medida que a peça clandestina progride, adornada
de uma contagiante cacofonia visual recheada de dança flamenca, luzes difusas e
decoração meticulosa, a narrativa de Ken Russell flagra instantes aqui e ali
dos bastidores, onde vemos um jogo de sedução volátil e ambivalente criando
corpo entre o irreprimível Wilde, um dos jovens rapazes da plateia e o próprio
(e enciumado) Bosie –e essa justaposição entre os arquétipos desempenhados em seus
papéis e a natureza imprevisível de quem esses personagens realmente são na
realidade, confere brilhante observação a esta tumultuada farsa de Ken Russell
sobre os vícios, as fraqueza, e os desejos humanos, orquestrada com um primor
insuspeito, francamente ameaçado de passar despercebido (como aliás aconteceu
de fato com este e com muitos outros trabalhos de Russell) por se esconder
atrás de uma muralha de despudor e vulgaridade irrestrita.
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