sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Sheena - A Rainha das Selvas


 O cinema comercial dos anos 1980 obedecia uma série de tendências bem diferentes das tendências de hoje –daí as obras daquela época serem bastante distintas, em muitos aspectos, do que se produz atualmente, chegando a causar franca estranheza em quem se aventurar a experimentá-las. Lançado em 1984, “Sheena-A Rainha das Selvas”, por exemplo, é uma produção que, não obstante sua limitação orçamentária e a ocasional precariedade de seus efeitos, não se furta de entregar cenas de nudez de sua exuberante protagonista (isso numa obra infanto-juvenil!), de evocar constantes manobras hoje tidas como politicamente incorretas e, na mescla de várias influências do período, revelar-se uma curiosa aventura de baixo-orçamento.

Dirigido por John Guilhermin, cineasta que, alguns anos antes, havia realizado a refilmagem de “King Kong” (aquele com Jessica Lange, onde o macaco gigante escala o World Trade Center), o primeiro “Morte Sobre O Nilo” (com Peter Ustinov) e até mesmo “Tarzan Vai À Índia” (de 1962, com Jock Mahoney) –ou seja, era um cineasta já veterano, mas, não necessariamente consagrado, o realizador ideal para filmes B de então –“Sheena” é uma adaptação da personagem de histórias em quadrinhos originalmente publicada pela Editora Fiction House, e criada (como não fica nada difícil de notar) como uma espécie de variação feminina de “Tarzan”.

Financiado pela Columbia Pictures, e produzido por Paul Aratow, o filme trazia como sua personagem-título a belíssima Tanya Roberts que, dois anos antes, havia chamado alguma atenção no filme “O Senhor das Feras”, de Don Coscarreli –produção na qual, de fato, esta aqui se espelha em muitos aspectos. Na trama, a garotinha que virá a ser Sheena (pois, ela tem um nome civilizado) chega com os pais numa região longínqua do Congo, na África, onde os nativos Zambusi apresentam uma cultura própria e até mesmo habilidades que beiram o sobrenatural (a terra avermelhada de seu território, por exemplo, tem capacidades curativas quase milagrosas). Não demora muito, e os incautos cientistas encontram a encrenca que tanto foram procurar: Numa expedição às cavernas de uma montanha próxima, os dois são soterrados em um desabamento e a criança, agora órfã, acaba adotada pela sacerdotisa da tribo (Elizabeth Bagaaya que, veja só, foi uma princesa africana na vida real, do reino de Toro, em Uganda!); até porque a menina corresponde, providencialmente, à uma profecia segundo a qual a salvadora daquele povo será uma criança branca a sair da montanha no momento em que esta ‘rugir’. É assim que a rebatizada Sheena (que não tarda a assumir as formas pra lá de estonteantes de Tanya Roberts, prontamente surgindo nua em cenas de banho de cachoeira logo na sequência) cresce em meio aos Zambusi, desenvolvendo poderes como a capacidade telepática de dar ordens aos animais.

É com lances previsíveis (embora envolventes enquanto aventura descompromissada) que a história vai avançando: Governado por um rei benevolente (ele permite que a tradição dos Zambusi permaneça livre de interferências da modernidade), o Congo recebe uma série de convidados estrangeiros para festividades, entre eles os jornalistas norte-americanos Vic Casey (Ted Wass, de “A Maldição da Pantera Cor-de-Rosa”, com a palavra ‘galã’ escrita na testa!) e Fletcher (Donovan Scott, de “1941-Uma Guerra Muito Louca”). Tudo é, entretanto, palco para uma conspiração: Na surdina, o perverso irmão do rei, o príncipe Otwani (Trevor Thomas), em conluio com a esposa do rei, sua amante (!), Condessa Zanda (a bela France Zobda) planejaram o assassinato do monarca –isso na exata ocasião em que a própria sacerdotisa dos Zambusi chega na cidade, levada justamente por um sonho premonitório, para alertar o rei desse iminente atentado. O rei acaba morto (com uma flecha de confecção zambussi) e a sacerdotisa, presa, acusada de sua morte. Já os americanos, de posse de uma câmera, foram os únicos a descobrir a farsa no momento em que o crime aconteceu.

Isso tudo obriga Sheena a vir para a civilização tentar libertar sua mãe adotiva (que termina morrendo, resultado das torturas que sofreu na cadeia) e, mais tarde, a unir-se aos jornalistas americanos, uma vez que eles, testemunhas do crime forjado, também se tornam alvo do herdeiro do trono.

Em sua fuga para a segurança dos confins da tribo Zambusi, Sheena e Vic (Fletcher, coitado, não demora muito para ser deixado de lado) engatam um romance em meio à paisagens paradisíacas, esquecendo ocasionalmente a urgência da questão. E não é só nisso –na desmesurada importância dada pelos personagens ao romance trivial em detrimento do perigo real e imediato que os antagonistas representam –que se encontra os elementos muitas vezes, digamos, inusitados que “Sheena” apresenta aos expectadores de hoje: Mais gritante que o vai e vem sem muita explicação dos personagens (o porque de Vic ficar o tempo todo junto de Sheena é um mistério, explicado somente pela formosura dela e pela insistência do roteiro em um romance entre os dois) é a própria circunstância presente, verdade seja dita, desde que a personagem surgiu nos quadrinhos: Loira de olhos azuis, ariana até a medula, Sheena é uma daquelas personagens que parece sugerir, subliminarmente, o homem branco vindo salvar os nativos de suas próprias confusões –é sempre alguém vindo de fora (e alguém branco, veja bem!) quem vem salvar os nativos de suas celeumas. E a esse branco (ou branca, no caso), não é negado, pelo enredo, nem mesmo o leque de habilidades, poderes e conhecimentos oriundos exclusivamente do exotismo que à eles pertence.

Talvez eu esteja sendo ranzinza –e o filme, em si, nunca deixa de ser apetecível, divertido e envolvente de se assistir, fruto da experiência do diretor Guilhermin –mas, esses tópicos presentes em “Sheena” parecem gritar ao expectador de hoje, com os valores de representatividade e inclusão, tão assim em evidência e tão requisitados no entretenimento atual.

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