Os filmes dos irmãos Peter e Bobby Farrelly sempre despertaram uma certa perplexidade da parte da crítica e do público (ao menos, a parcela um pouco mais sensata do público...). Seus trabalhos embora ostentassem alguma ocasional qualidade e noção de cinema –o que acabou eventualmente rendendo até um Oscar de Melhor Filme para um deles (para Peter, por “Green Book-O Guia”) –sempre tiveram por diretriz um viés fortemente politicamente incorreto em obras que oscilavam entre o francamente hilário e o espantosamente grosseiro.
O fato de serem comédias era o que justificava
a existência de tais obras e, de repente, tornava tais impropérios mais
apetecíveis ao público. Ao menos durante algum tempo.
Com a patrulha do politicamente correto em
voga, as obras dos Irmãos Farelly perderam muito de sua razão de ser, de seu
apelo junto ao seu público-alvo (adolescentes em sua maioria) e, nesses tempos
de cancelamento virtual, passaram até a oferecer certo perigo aos seus
realizadores.
O último trabalho deles nesse sentido é o
divertidíssimo “Passe Livre”, num já distante 2011; observe como comédias, de
um modo geral, simplesmente deixaram de ser feitas.
Exemplo de um cinema de humor que certamente
jamais seria praticado hoje em dia, “O Amor É Cego” foi realizado pelos Irmãos
Farrelly em 2001, um ano depois do engraçadíssimo e arrebatador “Eu, Eu Mesmo
& Irene” (com Jim Carrey) e seguiu as mesmas orientações de outros
trabalhos que eles entregaram naquele período. Assisti-lo hoje é constatar a
espantosa liberdade criativa da qual alguns autores se beneficiavam, e que não
mais existe. Difícil acreditar que um filme de tal proposta e execução passou
em brancas nuvens, sem gerar polêmica ou repúdio.
Ele se revela, sobretudo, diante dos valores
como hoje eles são, profundamente ofensivo, agressivo e até amoral –e nesse
processo flui com uma naturalidade que torna tudo ainda mais chocante e
inacreditável. Entretanto, conscientes do respaldo moral ao qual se prestam
mesmo as mais ultrajantes premissas, os Farrelly reservam, ao fim de seu
festival de bizarrices, preconceitos e ofensas, uma certa lição de moral e uma
mensagem positivista –os detratores intolerantes de hoje em dia diriam,
contudo, que seu filme vai longe demais mesmo que para justificar alguma boa
intenção: Para os justiceiros sociais dos tempos atuais, contrariando
Shakespeare, os fins não justificam os meios.
“O Amor É Cego” conta a história de Hal Larson
(Jack Black que, após uma promissora participação em “Alta Fidelidade”, começava
a alçar altos voos em Hollywood), rapaz que, ainda criança, teve um inusitado
episódio quando despediu-se do próprio pai: Dopado com medicamentos que lhe
entorpeciam o raciocínio devido à dor, o progenitor –que era reverendo –dá ao
pequeno Hal o conselho para, quando crescer, procurar sempre as mulheres mais bonitas
possíveis.
Apesar do humor de porta de banheiro
desempenhado –um humor esse ao qual Jack Black se encaixa com a mesma
espontaneidade que Jim Carrey –o filme dos Farrelly ostenta insuspeita
sofisticação na sua carpintaria psicológica do protagonista ao apresentar esse
prólogo. Pois eis que, ao crescer, Hal se torna assim, um solteiro compulsivo
incapaz de aprofundar o relacionamento com uma mulher justamente devido à essa
superficialidade com a qual encara a relação com o sexo oposto: Para ele e para
seu amigo Mauricio (Jason Alexander, da série “Seinfield” e de “Uma Linda Mulher”), as baladas noturnas nas danceterias de Nova York consistem de
procurar por mulheres de um padrão existencialmente inatingível –eles se deixam
desanimar com mínimos detalhes que enxergam como imperfeições determinantes
–ignorantes do fato de que, como indivíduos, também eles trazem seus próprios
defeitos.
São personagens desenhados de modo a ir de
encontro com a comédia assim proposta, mas não deixa ser nauseante ao
expectador sensato em muitos momentos –e por razões bastante erradas.
A invariável guinada na trama vem quando Hal,
por acaso, fica preso num elevador com o palestrante motivacional e programador
neurológico Tony Robbins, interpretando a si mesmo. Ele identifica os revezes
que a superficialidade crônica acarreta nas relações de Hal e resolve ajudá-lo:
Lhe faz uma espécie de ‘hipnose’ por meio da qual ele só enxergará a ‘beleza
interior’ das mulheres.
Assim, na linguagem visual estabelecida sem
pudores pelos Farrelly, Hal vê mulheres deslumbrantes, maquiadas e penteadas
como modelos de capa de revista, em pessoas que seriam tidas por feias,
esquisitas ou exóticas, mas que têm um coração humilde e amável.
Logo, esse comportamento começa a chocar
Mauricio –rendendo, no processo, uma série flagrante de comentários
desrespeitosos –e piora ainda mais quando Hal acaba se enamorando de Rosemary.
Aos olhos de Hal, a simpática e
bem-intencionada Rosemary é linda e magra –e mesmo que sempre bela e
fotogênica, em nenhum filme antes ou depois deste, Gwyneth Paltrow esteve tão
incrivelmente linda e sedutora –porém, aos olhos de todos os outros –e
ocasionalmente em flagras fortuitos da própria narrativa –nota-se que Rosemary
é uma garota que sofre de obesidade e tem uns quase duzentos quilos (!).
Em algum momento, essa curiosa condição de Hal
será revertida pelo muy amigo
Mauricio, no entanto, quando descobre a verdadeira aparência (e as reais
dimensões) de Rosemary, ele já está genuinamente apaixonado –e então o
protagonista se defronta com o dilema, nem tão bem esboçado assim, onde a
vontade de estar com a garota que ama colide com o escrutínio da opinião alheia
e com os próprios preconceitos mesquinhos então expostos.
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