segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Destinos À Deriva


 É de se perguntar se, na intensidade com que expõe sua situação central, “Destinos À Deriva” –ou “Nowhere”, seu título original –não extrapola sua proposta, resultando num suplício ao expectador na mesma medida em que tão somente registra o suplício interminável de sua protagonista.

No que aparenta ser uma Espanha assolada por mazelas sociais tornadas, na ficção, ainda mais contundentes que na realidade, a jovem Mia (a ótima Anna Castillo) tenta partir, ao lado do marido, para qualquer outro lugar que seja: O regime totalitário transforma o simples ato de ser cidadão numa ameaça, as chamadas “medidas de escassez” do governo lhes levaram a filha pequena que tinham e, estando Mia grávida, o casal busca uma fuga ilegal do país, enfiando-se junto de dezenas de outros refugiados num contêiner de um navio cargueiro.

Logo, o roteiro escrito à dez mãos (!) por Ernest Riera, Miguel Ruz, Indiana Lista, Seanne Winslow e Teresa Rosendoy, e a direção de Albert Pintó irão enfileirar infortúnio atrás de infortúnio a fim de colocar a prova a capacidade e a vontade para sobreviver da incauta personagem principal: Já ali, no início, ela e Nico (Tamar Novas, de “Abraços Partidos”), seu marido, são separados um do outro –ele vai parar num outro contêiner próximo –e, na sequência, durante uma tensa e violenta revista, todos os passageiros clandestinos (inclusive, outras mulheres grávidas e crianças!) são fuzilados por agentes do governo; Mia escapa quase que por milagre: Tinha escalado um dos caixotes de madeira do contêiner, onde acabou escondida.

Única sobrevivente, portanto, a estar dentro do contêiner quando este é colocado à bordo da embarcação, Mia testemunha, através dos buracos de bala, único acesso que ela tem para espiar o mundo lá fora, o navio enfrentar águas turbulentas em alto-mar e, consequentemente, perder muito de sua carga –inclusive, o próprio contêiner onde, ela própria, se encontra, sozinha e confinada!

Está aí, pois, estabelecida a circunstância com a qual o tenso e sofrido filme de Albert Pintó irá exaurir o expectador até o seu término: Uma situação-limite, para além das penúrias de obras como “Até O Fim”, “Mar Aberto” ou “Águas Rasas” na qual não apenas a condição de náufrago, propriamente dita é submetida à protagonista (e todas as privações severas que ela, não tenha dúvidas, irá experimentar), mas também, a condição ainda mais periclitante, na qual está grávida à espera de uma criança, e depois (após o parto, numa cena assombrosa em meio à uma tempestade) ainda se ver diante da situação de ter, junto de si, uma criança recém-nascida a qual precisará, alimentar e zelar pela vida, como a si própria.

Além disso tudo, o roteiro de “Nowhere”, de um ponto em diante, parece tão claramente disposto a elaborar agonias sucessivas à sua personagem principal que uma certa sensação de sadismo da parte dos realizadores não deixa de transparecer ao expectador –tudo acaba sendo sofrido demais, dilacerante demais, e (o que é pior) organizado com meticulosidade demais, para aceitar que tantas infelicidades, em tal profusão e com tal exatidão, se sucederam com uma única e desafortunada pessoa.

Essa inclinação ao melodrama intenso e à tragédia resfolegante drena completamente a sutileza que poderia elevar a qualidade do filme, mas sendo esta uma produção da Netflix –cujos projetos, em geral, primam por um constante exagero neste ou naquele quesito –logo, pode-se compreender os propósitos comerciais da obra: Entregar ao público jovem de hoje (aquele público pouco afeito à parcimônia, criado à base do imediatismo das redes sociais) um exemplar de suspense de sobrevivência que atenda às demandas de seu gosto e predileção pelo exorbitante –a julgar pelo sucesso que o filme vem fazendo, a Netflix acertou em cheio!

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