Se em princípio Jay Roach foi um realizador de comédias compromissadas tão somente com o objetivo de fazer rir (como atestam os hilariamente ácidos exemplares da série “Entrando Numa Fria”), aos poucos, filme após filme, ele conseguiu migrar para o cinema uma capacidade que já demonstrava em obras televisivas: Uma percepção desigual e afiada para registrar com urgência sublime e relevância maiúscula as arestas sociais e comportamentais de certos aspectos da modernidade na política norte-americana, como atestam os formidáveis “Virada de Jogo” (feito para TV) e “Trumbo” (lançado em cinema). Neste magnífico “Bombshell”, Roach mantêm suas câmeras aguçadas no panorama político da América (sua trama abrange o período das eleições presidenciais norte-americanas de 2015-16), ao mesmo tempo que joga luz sobre um tema cada vez mais necessário: A cultura do assédio.
Ainda no ano de 2015, a âncora Megyn Kelly (Charlize
Theron, espetacular) foi escolhida pelo canal de notícias Fox News para mediar
os debates presidenciais entre os pré-candidatos republicanos, entre eles,
aquele que terminaria ganhando a preferência –e, no ano seguinte, as próprias
eleições –Donald Trump. Embora ferrenha defensora dos ideais
ultra-conservadores de direita, Megyn foi fiel ao perfil combativo com o qual
era vista na mídia e confrontou Trump com perguntas incisivas sobre sua
alardeada misoginia.
O episódio gerou um impasse delicado na Fox
News: Ao mesmo tempo em que a rede jornalística representava um dos maiores apoios
à candidatura republicana –e Megyn beneficiava-se de relativa confiança do
todo-poderoso presidente do canal Roger Ailes (John Lithgow, sordidamente
convertido por quilos de maquiagem) –a jornalista comprou uma briga informal
contra o candidato que passou a retuitar em mídia nacional várias ofensas
contra ela.
Essa transformação forçada de paradigmas de
Megyn coincidiu com outro acontecimento, também ressonante, nos corredores da
Fox News; transferida de um programa do horário nobre para outro na ingrata
programação da tarde (por não suportar o sexismo predominante de seus colegas
de cena), a apresentadora Gretchen Carlson (Nicole Kidman, ótima) abriu um
processo por antigos abusos sexuais contra o próprio Roger Ailes tão logo é,
por fim, demitida.
Hábil e astuta, Gretchen tinha algumas cartas
na manga, como a previsível atitude de sua demissão por parte de seu patrão
manipulador, mas contava com a aparição, logo após sua iniciativa, de outras
mulheres que também foram assediadas. É Megyn, inesperadamente, uma delas,
entretanto, ela estava longe de ser a única: Também ganha bastante espaço na
narrativa a circunstância de Kayla Pospisil (Margot Robbie, em corajosa e
brilhante atuação), jovem produtora em ascensão profissional dentro da Fox News
que é coagida, naquela que é de longe a cena mais aflitiva de todo o filme, por
Roger Ailes em pessoa à levantar sua saia até que sua calcinha fique visível.
Dentre todas essas personagens, somente
a de Kayla não é precisamente real –trata-se de um amálgama de pelo
menos duas dezenas de mulheres que prestaram depoimento ao roteirista do filme,
Charles Randolph (de “A Grande Aposta”).
Impressionante, entre outras coisas, é também o
retrato que o filme de Roach faz do clima que surge, logo em seguida, nos
corredores da Fox News: Com seu presidente sendo acoado por questões imprevistas
de natureza procedural, a rede move seus recursos tentando provar o contrário,
que Ailes era respeitador e inofensivo (funcionárias são obrigadas a vestir uma
camisa em apoio ao chefe processado e depoimentos positivos são exigidos de
praticamente todas as mulheres da empresa), que provas para quaisquer acusações
eram inexistentes (uma severa operação de pente-fino, inclusive com o uso de
escutas telefônicas, é adotada), e que a ex-contratada do canal, Gretchen Carlson,
não era alguém confiável (todo o arsenal midiático da Fox News é subitamente
voltado contra a reputação pessoal e profissional dela).
Contudo, as trajetórias íntimas de cada uma
dessas três protagonistas, Megyn, Kayla e Gretchen, haverá de expor os caminhos
tortuosos por meio dos quais, felizmente, a verdade se fez prevalecer, levando
Ailes, após uma avalanche repentina de inúmeras acusações de assédio, a ser
demitido pelo próprio dono da corporação, o magnata Rupert Murdoch (uma ponta
de Malcolm McDowell).
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