Ao lado de Chad Stahelski, o diretor David Leitch conduziu uma espécie de revolução no cinema hollywoodiano de ação –ancorados na formidável mitologia de “John Wick”, as novas produções não mais se satisfaziam na pancadaria descerebrada que dominou o gênero a partir dos anos 1980. Agora, os filmes de ação têm um entendimento singular de cinema (não somente com notáveis referências que vão desde obras obscuras do cinema de Hong-Kong até menções apaixonadas a trabalhos cultuados do cinema mudo, mas também exercícios de virtuosismo técnico que, não raro, incluem planos-sequências formidáveis e desafiadores construídos num único take) e uma exuberante contribuição da habilidade artística, instintiva e corpórea de seus dublês (ofício primeiro de Stahelski), isso tudo, sem esquecer quesitos antes negligenciados como interpretação (tais filmes ostentam sempre talentosos atores como não deixa mentir o ótimo Keanu Reeves), roteiro (seus enredos mergulham em meandros que apresentam profundidade e dramaturgia) e direção (o conhecimento narrativo pulsa, em igual entusiasmo, com o conhecimento da ação) –em suma, agora, filmes de ação são cinema de verdade.
A diferença entre os dois grandes responsáveis
por essa pequena revolução temática, Stahelski e Leitch, é que, enquanto
Stahelski aprecia a estrutura interna da movimentação dos corpos em conflito, e
disso faz toda uma coreografia com propósito e sentimento, Leitch é apaixonado
pelos elementos que impulsionam, dentro da trama, esses mesmos corpos em
conflito. Dessa convicção veio a adaptação de quadrinhos nunca menos que
sensacional “Atômica” e, agora, este “Trem-Bala”, cuja trama, inspirada, por
sua vez, no romance de Kotarô Isaka, caminha pelos sinuosos desdobramentos da
comédia, adentra os intrincados flashbacks
de um neo-noir moderno e se ramifica
em diversos personagens, assumindo pontos de vista, interrompendo o fluxo
narrativo para regressar no tempo e narrar histórias paralelas que, às vezes,
vão complementar a história principal de formas inesperadas. Em suma: Enquanto
promove ação ininterrupta e pancadaria refinada num nível que Chuck Norris e
Jean-Claude Van Damme jamais poderiam sonhar em seus áureos tempos, David
Leitch também se permite brincar com a narrativa de forma elaborada e
sofisticada.
A premissa que urge “Trem-Bala” é complexa –e
vai se complicando e se fragmentando ainda mais a medida que o filme avança
–embora desenvolvida dentro de uma circunstância simples: O filme muito pouco
sai de dentro da ambientação do trem-bala do título, um transporte high-tech de alta-velocidade que singra
todo o Japão.
É dentro dele que o assassino Ladybug (Brad
Pitt, divertidíssimo) irá, aos poucos, desvendar a missão que lhe foi confiada
–e que é, em si, uma baita enrascada! Sob instruções via celular de sua
contratante Maria (uma ponta luxuosa de Sandra Bullock, devolvendo o favor da
participação especial de Pitt em “Cidade Perdida”), Ladybug deve roubar uma
maleta contendo dinheiro de dois outros passageiros do trem, os gêmeos Lemon e
Tangerine (Brian Tyree Henry e Aaron Taylor Johnson, que de gêmeos não têm
nada). O problema é que os gêmeos também têm seus próprios contratempos; a
missão deles é levar o dinheiro (contido na maleta) e uma espécie de refém
(Logan Lerman), um viciado que vem a ser filho do temido chefão do crime, White
Death (Michael Shannon). Nem bem o trem sai da estação, a maleta é roubada (por
Ladybug) e o refém é morto (por alguém cuja identidade ainda é um mistério)
colocando Lemon e Tangerine com um grande abacaxi nas mãos. Eles têm que
encontrar um meio de livrarem-se dessa confusão antes do trem-bala chegar à
última estação –quando não terão escapatória (nem eles, nem Ladybug) das mãos
cruéis de White Death.
Há, em meio ao frenesi dos demais passageiros
do trem, outros personagens que acrescentam mais densidade e intriga a essa
sucessão de tumultos: Kimura (Andrew Koji), assassino de aluguel disposto a
vingar um acidente sofrido pelo filho cujo papel, dentro do trem, termina sendo
o de marionete nas mãos da manipuladora Prince (Joey King, na personagem mais
enervante do filme), uma patricinha dissimulada e aparentemente inocente que
planeja a morte que praticamente todos os personagens (!); a Vespa (Zazie
Beetz, de “Deadpool 2” e “Coringa”) uma assassina sorrateira especializada em
envenenamento; Wolf (o rapper Bad Bunny), um assassino mexicano à bordo do
trem, também ele, em busca de vingança; e uma espécime rara de cobra (!?),
surrupiada do zoológico local, dona de um veneno capaz de levar a vítma de sua
mordida à morte por hemorragia em 30 segundos (!), e que por conta desse mero
detalhe é essencial à história.
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