domingo, 1 de outubro de 2023

Trem-Bala


 Ao lado de Chad Stahelski, o diretor David Leitch conduziu uma espécie de revolução no cinema hollywoodiano de ação –ancorados na formidável mitologia de “John Wick”, as novas produções não mais se satisfaziam na pancadaria descerebrada que dominou o gênero a partir dos anos 1980. Agora, os filmes de ação têm um entendimento singular de cinema (não somente com notáveis referências que vão desde obras obscuras do cinema de Hong-Kong até menções apaixonadas a trabalhos cultuados do cinema mudo, mas também exercícios de virtuosismo técnico que, não raro, incluem planos-sequências formidáveis e desafiadores construídos num único take) e uma exuberante contribuição da habilidade artística, instintiva e corpórea de seus dublês (ofício primeiro de Stahelski), isso tudo, sem esquecer quesitos antes negligenciados como interpretação (tais filmes ostentam sempre talentosos atores como não deixa mentir o ótimo Keanu Reeves), roteiro (seus enredos mergulham em meandros que apresentam profundidade e dramaturgia) e direção (o conhecimento narrativo pulsa, em igual entusiasmo, com o conhecimento da ação) –em suma, agora, filmes de ação são cinema de verdade.

A diferença entre os dois grandes responsáveis por essa pequena revolução temática, Stahelski e Leitch, é que, enquanto Stahelski aprecia a estrutura interna da movimentação dos corpos em conflito, e disso faz toda uma coreografia com propósito e sentimento, Leitch é apaixonado pelos elementos que impulsionam, dentro da trama, esses mesmos corpos em conflito. Dessa convicção veio a adaptação de quadrinhos nunca menos que sensacional “Atômica” e, agora, este “Trem-Bala”, cuja trama, inspirada, por sua vez, no romance de Kotarô Isaka, caminha pelos sinuosos desdobramentos da comédia, adentra os intrincados flashbacks de um neo-noir moderno e se ramifica em diversos personagens, assumindo pontos de vista, interrompendo o fluxo narrativo para regressar no tempo e narrar histórias paralelas que, às vezes, vão complementar a história principal de formas inesperadas. Em suma: Enquanto promove ação ininterrupta e pancadaria refinada num nível que Chuck Norris e Jean-Claude Van Damme jamais poderiam sonhar em seus áureos tempos, David Leitch também se permite brincar com a narrativa de forma elaborada e sofisticada.

A premissa que urge “Trem-Bala” é complexa –e vai se complicando e se fragmentando ainda mais a medida que o filme avança –embora desenvolvida dentro de uma circunstância simples: O filme muito pouco sai de dentro da ambientação do trem-bala do título, um transporte high-tech de alta-velocidade que singra todo o Japão.

É dentro dele que o assassino Ladybug (Brad Pitt, divertidíssimo) irá, aos poucos, desvendar a missão que lhe foi confiada –e que é, em si, uma baita enrascada! Sob instruções via celular de sua contratante Maria (uma ponta luxuosa de Sandra Bullock, devolvendo o favor da participação especial de Pitt em “Cidade Perdida”), Ladybug deve roubar uma maleta contendo dinheiro de dois outros passageiros do trem, os gêmeos Lemon e Tangerine (Brian Tyree Henry e Aaron Taylor Johnson, que de gêmeos não têm nada). O problema é que os gêmeos também têm seus próprios contratempos; a missão deles é levar o dinheiro (contido na maleta) e uma espécie de refém (Logan Lerman), um viciado que vem a ser filho do temido chefão do crime, White Death (Michael Shannon). Nem bem o trem sai da estação, a maleta é roubada (por Ladybug) e o refém é morto (por alguém cuja identidade ainda é um mistério) colocando Lemon e Tangerine com um grande abacaxi nas mãos. Eles têm que encontrar um meio de livrarem-se dessa confusão antes do trem-bala chegar à última estação –quando não terão escapatória (nem eles, nem Ladybug) das mãos cruéis de White Death.

Há, em meio ao frenesi dos demais passageiros do trem, outros personagens que acrescentam mais densidade e intriga a essa sucessão de tumultos: Kimura (Andrew Koji), assassino de aluguel disposto a vingar um acidente sofrido pelo filho cujo papel, dentro do trem, termina sendo o de marionete nas mãos da manipuladora Prince (Joey King, na personagem mais enervante do filme), uma patricinha dissimulada e aparentemente inocente que planeja a morte que praticamente todos os personagens (!); a Vespa (Zazie Beetz, de “Deadpool 2” e “Coringa”) uma assassina sorrateira especializada em envenenamento; Wolf (o rapper Bad Bunny), um assassino mexicano à bordo do trem, também ele, em busca de vingança; e uma espécime rara de cobra (!?), surrupiada do zoológico local, dona de um veneno capaz de levar a vítma de sua mordida à morte por hemorragia em 30 segundos (!), e que por conta desse mero detalhe é essencial à história.

Cada um desses personagens é norteado por seu próprio propósito e sua própria trama, e é dessa forma que suas trajetórias se cruzam (ou melhor, se colidem!) à bordo do trem-bala, quando seus objetivos e motivações entram em conflito à medida que o trem avança, e sua trama, pontuada de alianças refeitas e desfeitas, de mortes e perseguições, revelações e segredos de última hora, vai se afunilando até a apoteótica estação final, quando diretor David Leitch terá exibido todo o seu espetacular leque de recursos para brindar o público com um dos mais inventivos, divertidos e insanos filmes a mesclar comédia e ação em níveis impraticáveis em muito tempo.

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