quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

A Sociedade da Neve


 Diretor do igualmente brilhante (e igualmente inspirado em uma catástrofe real) “O Impossível”, o espanhol J.A. Bayona volta suas lentes, desta vez, para o famoso acidente de avião decorrido em 1972, que confinou um grupo de jovens jogadores de rúgbi nas imensidões inóspitas e geladas da Cordilheira dos Andes –a mesma tragédia já havia inspirado os filmes “Os Sobreviventes dos Andes”, de 1976, e “Vivos”, de 1993. A obra de Bayona é, de longe, a mais cinematograficamente concisa e perfeita.

No dia 13 de outubro de 1972, um grupo de jovens uruguaios, integrantes desportistas de um time  de rúgbi, junto de amigos, preparadores e familiares, pegam o avião 571, com destino ao Chile, e em seu percurso, é severamente castigado pelas intempéries ao atravessar a Cordilheira dos Andes. Solapado pelos fortes ventos, a aeronave cai na neve –numa cena brilhantemente equilibrada, montada e concebida, sem excessos e sem omissões –deixando cerca de 29 sobreviventes dentre os 45 passageiros que se achavam a bordo.

Acreditando numa chegada iminente de uma equipe de resgate –esperança essa que vai minguando a medida que dias, semanas e meses vão se passando –os sobreviventes lutam para superar as condições climáticas extremamente adversas (o frio naquela altitude atingia níveis atrozes), refugindo-se dentro do que restou da fuselagem do avião. Contudo, a gradual e inclemente passagem dos dias confronta a todos com uma fome severa, deixando claro que será, acima de tudo, essa privação –para além dos ferimentos terríveis que fulminam um ou outro –o fator que poderá acabar matando a todos eles.

Firmando uma espécie de pacto implícito –não sem antes padecer de todos os questionamentos morais e éticos que alguém civilizado experimentaria –os sobreviventes decidem usar da única comida que têm à disposição: A carne nos corpos dos falecidos no acidente (amigos e familiares) que, devido ao frio extremo, manteve-se conservada sem entrar em putrefação.

Numa comparação –inevitável para os cinéfilos um pouco mais velhos –com “Vivos”, o trabalho de Bayona é inquestionavelmente mais amplo, mais detalhado e mais circunspectamente humano que a burocrática obra de Frank Marshall; “Vivos” é uma reconstituição básica, começando minutos antes do acidente e terminando no momento do resgate. “A Sociedade da Neve” não é, e nem quer, ser tão enxuto assim –ele explora os momentos de convívio dos personagens muito antes do avião partir (prólogo que só faz potencializar o drama quando, lá pelas tantas, as cenas de canibalismo se farão necessárias) e continua a acompanhar os sobreviventes (que, depois de todas as provações naqueles exasperantes e intermináveis 72 dias, terminaram sendo apenas 16) após enfim serem resgatados, mostrando sua catártica e ainda dolorosa recuperação no hospital, e uma inesperada dificuldade de readaptação à vida normal.

Se “Vivos” colocava como personagens principais Nando Parrado e Roberto Canessa (muito bem interpretados aqui por Augustín Pardella e Matías Recalt, respectivamente), justamente aqueles que, no angustiante trecho final, empreenderam uma inacreditável caminhada rumo ao Chile, na tentativa de achar a civilização e vencer a intransponibilidade gigantesca da imensurável Cordilheira (jornada árdua retratada em minúcia comovente pelo diretor Bayona), em “A Sociedade da Neve”, quem ganha um curioso protagonismo é Numa Turcatti (Enzo Vogrincic, parecidíssimo com Adam Driver), justamente um dos passageiros que não chega vivo ao final –uma maneira respeitosa de Bayona reiterar o heroísmo de todos os envolvidos e não apenas daqueles que sobreviveram e que chegaram a ser enaltecidos pela mídia.

Acima de tudo, “A Sociedade da Neve” é uma obra que se despe das prováveis (e certamente inevitáveis) comparações com outras obras que já abordaram a mesma história (adaptado do livro de Pablo Vierci, a melhor e mais impecável das documentações de relatos feitas desse acidente) para se concentrar na predisposição quase miraculosa que o espírito humano encontra para sobreviver, mesmo que nas mais improváveis condições. É um trabalho que torna a resgatar uma poderosa história real que merece ser sempre recontada e relembrada a cada nova geração –difícil mesmo será, durante a próxima tentativa, igualar a qualidade estratosférica deste grande filme aqui.

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