Um dos diversos documentários que um ainda jovem diretor Werner Herzog concebeu entre os anos 1960 e 70, “Fata Morgana” é considerado por muitos críticos o trabalho mais desafiador de Herzog –isso, numa filmografia que entrega verdadeiros tratados sobre a dificuldade de relação do ser humano com o seu meio e consigo próprio, como “Aguirre-A Cólera dos Deuses”, "Fitzcarraldo” e “O Enigma de Kaspar Hauser”.
O sonho, o delírio é um instrumento narrativo
comum nos trabalhos de Herzog –o delírio como um objetivo que logo se converte
em obsessão. Aqui, o delírio é uma espécie de busca. A câmera do diretor
procura, de alguma forma, capturá-lo, mesmo diante da desoladora constatação
existencial de que é, por assim dizer, virtualmente impossível.
Filmado em 16mm, com uma câmera pequena e de
fácil manuseio, e narrado pela historiadora e crítica cinematográfica Lotte
Eisner, “Fata Morgana” acompanha o próprio Herzog numa travessia inconsequente
no deserto do Saara, acometido de todas as imbricações físicas e metafísicas
possíveis: Diante do calor extremo, ardendo em febre, o diretor mal consegue
sustentar a câmera, e são essas sessões de delirium
treme que definem a estrutura narrativa de seu filme –a partir dessas
imagens, o diretor justapõe na montagem, as peças vastas e variadas que
integram uma ilustração visual da criação do universo (algo que talvez tenha
servido de inspiração para Terence Malick, anos depois, em seu “Árvore da Vida”), na qual ele vislumbra sua própria falta de fé na humanidade, flagrada nos
dejetos que poluem até regiões que supunha-se intocadas pelo Homem.
Essa narrativa lisérgica e lírica, poética e
surreal, psicodélica e reflexiva divide-se em três partes: Em “Criação”, a
primeira delas, sob a voz de Lotte Eisner, testemunhamos a fusão entre as
tomadas paisagísticas do deserto e a história de origem da tribo K’iche, da
Guatemala, que remete aos primórdios da Pré-História. Tal e qual o mito maia do
Popol Vuh (a copilação ‘bíblica’ da civilização maia, que também batiza do
conjunto musical autor da trilha sonora aqui) onde as divindades Cucumatz,
Tepeu e Huracán se alternam na criação do mundo a partir do absoluto vazio, a
história dos K’iche é uma ciranda de catástrofes, desventuras e resiliência à
guiá-los pelo árduo caminho da sobrevivência. Contudo, Herzog parece espumar
uma certa ironia ao afirmar que a verdadeira causa do fim dos K’iche, a
despeito de sua estóica trajetória na insistência em perdurar, foi a ascensão
dos outros seres humanos.
Na segunda parte, “Paraíso”, o diretor flagra
instantes curiosos de seus compatriotas (alemães) nos quais todos parecem
compor uma espécie de afresco dos absurdos humanos, como a obsessão de uma
zoóloga pelas espécimes de lagartos que estuda, a atitude indiferente, fútil e
descontroladamente risonha de um grupo de turistas, e uma professora na África,
orientando seus alunos –“Blitzkrieg é
uma loucura!” –acerca das atrocidades da guerra. Blitzkrieg é um termo alemão que denomina uma manobra militar
rápida, na qual o ataque se dá tão subitamente que o adversário não tem tempo
para organizar sua defesa; daí sua tradução mais usual ser ‘guerra-relâmpago’.
Na última das três partes, “Idade de Ouro”, Herog
vale-se desses argumentos –e do subterfúgio sedutor de suas imagens –para sugerir
o alvorecer de um novo mundo, uma nova utopia, a partir das ruínas vislumbradas
do mundo anterior. Delírio conceitual que converte muito do documentário que “Fata
Morgana” aparentava ser numa espécie de ficção científica perpassada de poesia
e melancolia –é a Terra e as tolas extravagâncias humanas observadas pelo que
pode ser um olhar todo alienígena.
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