quarta-feira, 11 de junho de 2025

O Eternauta


 Em princípio, esta formidável série da Netflix parece guardar elementos das ficções científicas dos anos 1950 cujas narrativas se muniam de teorias da conspiração, cenários pós-apocalípticos, invasões alienígenas e muita paranóia, mas isso ocorre porque a história em quadrinhos aqui adaptada, escrita por Hector Oesterheld e desenhada por Francisco Solano López, de fato, É dos anos 1950 –publicada na Argentina, mais especificamente, entre 1957 e 1959 –e tida como a mais importante obra em quadrinhos daquele país.

Transposto para a atualidade, o enredo (cujas alegorias em muito evocavam a repressão sofrida pela Argentina nos anos de ditadura que perpassaram o Século XX) abandona alguns tópicos, lança mão de novos personagens, compreende toda uma nova e urgente reflexão a ser realizada, mas termina honrando, e muito bem, o espírito do trabalho de Oesterheld. No que parece ser uma noite comum em Buenos Aires, os amigos Juan Salvo (Ricardo Darín), Lucas (Marcelo Subiotto), Polsky (Claudio Martínez Bel) e Omar (Ariel Staltari) se reúnem para jogar truco na casa de Alfredo Favalli (César Troncoso, do cult “O Banheiro do Papa”) quando são surpreendidos por um fenômeno inesperado: A um misterioso pulso eletromagnético (que desabilita todas as máquinas de função elétrica no país, talvez no continente inteiro!) segue-se uma nevasca poderosamente tóxica (pessoas em contato com os flocos que caem do céu morrem instantaneamente!). Por estarem fechados por acaso dentro da casa, Juan Salvo e seus amigos, mais Ana (Andrea Pietra), esposa de Favalli, escapam de morrer como tantos que eles testemunham perecer pelas janelas. Junta-se a eles a entregadora Inga (Orianna Cárdenas) que, na última hora, conseguiu se refugir na garagem do mesmo prédio.

Contudo, Salvo possui uma filha adolescente, Clara (Mora Fisz), cujos apuros são mostrados, em parte, no prólogo do primeiro episódio, e uma ex-esposa, Elena (Clara Peterson). Temendo pela vida delas, ele se equipa com o uniforme e a máscara que o isolam do perigo tóxico –e que tão bem ilustram o visual memorável do personagem, seja na HQ, seja na série –e sai a pé pela cidade na tentativa de encontrá-las (momentos onde a série faz lembrar a maestria das cenas desoladoras vistas em “Eu Sou A Lenda”). Pelo menos os primeiros três episódios se desdobram nesse objetivo, enquanto Salvo vai encontrando pela frente outros núcleos de personagens sobreviventes às voltas com as novas circunstâncias de um mundo cujo apocalypse virou as antigas percepções de pernas para o ar –não mais podendo contar com a conveniência social, as pessoas organizam grupos armados, dispostos a se proteger daqueles saqueadores que imediatamente adotam a lei da selva.

Entre o terceiro e o quarto episódio, após muitas idas e vindas (que vão consolidando Salvo, sua ex-esposa e os amigos liderados por Favalli num grupo unido no objetivo de sobreviver), Salvo corre atrás de uma pista do paradeiro de Clara que aponta para o centro populoso da capital, onde ele e Favalli encontram um grupo reunido numa igreja protegendo-se de outra grande ameaça: Caídos do céu, como meteoros, criaturas de uma espécie de besouro gigante carnívoro vem vitimando os seres humanos que escaparam com vida da nevasca tóxica. Os dois últimos e sensacionais episódios, levam os personagens a partirem de seu refúgio até então seguro, quando são surpreendidos pela súbita e inexplicada interrupção da nevasca, e acabam indo parar no Campo de Maio, uma fortaleza erguida com recursos militares. Lá, Favalli (por seu conhecimento como engenheiro elétrico) e Salvo (por sua comprovada habilidade com armas de fogo, adquirida na juventude durante a Guerra das Malvinas) são recrutados para uma audaciosa missão, invadir do centro de Buenos Aires a bordo de um trem e enviar via rádio uma mensagem de socorro pela torre principal –é quando os personagens se defrontam com novos perigos e, talvez, com algumas respostas.

Dirigido por Bruno Stagnaro e produzido pela KyS Films (produtora do elogiado “Relatos Selvagens”), “O Eternauta” ostenta, ao longo de todos os seus fenomenais seis episódios toda a qualidade insuspeita que o cinema argentino sempre exibiu, trazendo um entendimento instintivo dos tópicos que faziam dos quadrinhos de Oesterheld um trabalho tão antológico. A um só tempo fiel e diferenciadamente travessa em relação à sua fonte original, esta série da Netflix é um testemunho da competência à toda prova dos artesões argentinos, na manutenção habilidosa, minuciosa e criteriosa de um roteiro equilibradíssimo, na condução de um elenco fantástico (com o sempre magnífico Ricardo Darín à frente) e numa direção brilhante seja nas cenas mais intimistas, seja nas de ação.

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