quinta-feira, 6 de junho de 2024

Não! Não Olhe!


 Em seu primeiro filme, “Corra!”, o diretor, roteirista e produtor Jordan Peele explorou as variações do racismo num expediente do gênero terror; no segundo, “Nós”, ele valeu-se de uma alegoria asfixiante em torno do mito do doppelganger; em ambos, havia uma reflexão subliminar sobre as pessoas suburbanas da América. Esse subtexto volta a aparecer aqui, em “Nope” –o título nacional curiosamente entrega um pequeno spoiler acerca dos desdobramentos da trama –onde Peele desta vez se apropria dos mistérios em torno de aparições extraterrestres para contar a história dos irmãos Haywood, O.J. e Emerald (vividos por Daniel Kaluuya e Keke Palmer); ele taciturno, introspectivo e observador; ela, falante, articulada e inteligente. No prólogo, temos também a aparição do pai deles (o veterano Keith David, de “Requiem Para Um Sonho” e “Quem Vai Ficar Com Mary?”), logo fulminado por um fenômeno estranho (apetrechos triviais, como chaves e moedas, começam a cair do céu com alta periculosidade). É apenas o primeiro indício, para O.J. de que algo está errado nas proximidades daquela fazenda onde sua família, desde sempre, criou cavalos para serem usados em filmagens.

Há outros personagens como Jupe (Steven Yeun), o proprietário asiático(!) de um show de cowboys nas imediações (as sequências em que são mostrados flashbacks dele a envolver uma terrível experiência com um chimpanzé podem parecer muito aleatórias, mas explicam de certa maneira suas atitudes em dado momento); Angel Torres (Brandon Perea), o técnico, viciado em tecnologia, que atende numa bucólica loja de aparelhos da região; e Antiers Holst (Michael Wincott, de “O Corvo” e “Verdades Que Matam”), um diretor de cinema dedicado à ideia de filmar o take de câmera mais inacreditável já feito. Cada qual, à sua maneira, acrescentará algo ao estranho enigma alienígena que o roteiro de Peele sempre fará com que regresse aos Haywood.

Em sua fazenda, coisas estranhas acontecem –é difícil não lembrar, em muitos momentos, da direção de M. Night Shyamalan em “Sinais”, realizador com quem o trabalho de Jordan Peele começa a estabelecer uma grande proximidade: Aparelhos elétricos apagam subitamente, os animais ficam alarmados, e as nuvens, seja dia ou noite, demonstram curiosa e suspeita atividade –o vento não as carrega por exemplo (!). Emerald, e logo depois O.J. começam a achar que algo está errado.

Os acontecimentos que se sucedem vão se somando e se tornando cada vez mais alarmantes –e apesar disso, O.J. insiste em permanecer na fazenda a fim de tratar dos animais. Para Emerald, em última instância, essa é a oportunidade de capturar a imagem de um O.V.N.I. como ninguém jamais foi capaz de fazê-lo, e nesse objetivo, os auxílios de Angel e Antiers haverão de ser fundamentais.

De ritmo envolvente e afiado na execução de sua premissa, “Nope” é mais um notável acréscimo de Jordan Peele à sua própria filmografia, cujos títulos parecem agregar, com inspirada habilidade, três objetivos, em princípio, bastante distintos entre si: O primeiro, uma evocação insuspeita sobre o cinema de gênero e suas raízes mais primitivas (aqui, além de uma breve piscadela de metalinguagem, ele aborda uma história sobre o primeiro take de cinema, onde um jóquei negro era mostrado sobre um cavalo); o segundo, uma observação dos indivíduos ordinários dos EUA, sempre relegados à papéis secundários e muitas vezes subalternos na execução do sonho americano, com uma nada disfarçada ênfase na discriminação para com a etnia que mais representa essa classe; e o terceiro, a união de todas essas narrativas numa obra que, no fim das contas, se assume como um cinema de entretenimento de fato, um trabalho cujo objetivo final acaba sendo a satisfação do público através de uma hipnótica, saborosa e intrigante produção de suspense. Delicioso como um bolo de chocolate, como diria o mestre maior, Alfred Hitchcock.

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