segunda-feira, 21 de junho de 2021

Requiem Para Um Sonho


 Para uns a ideia da revisão de um filme tão extenuante, impactante e incômodo como “Requiem Para Um Sonho” pode parecer loucura; para mim, contudo, significa a chance de rever e redescobrir uma das mais sensacionais obras de cinema realizadas nos anos 1990 –até então ainda o melhor trabalho de Darren Aronofsky –relembrar o porque de minha obcecada paixonite por Jennifer Connelly durante aqueles idos (plenamente justificada neste filme e em outros projetos excelentes) e profundar-me ainda mais nos códigos e detalhes subliminares que proporcionam novas impressões da obra. Sim, pois embora seja comum afirmar que alguns filmes devem ser revistos de tempos já que eles mudam, minha opinião é outra: Somos NÓS que mudamos. Nossa bagagem cultural e sentimental muda, nos tornando capazes de perceber nuances que já estavam lá, mas não nos foi possível apreender.

E não tenham dúvidas, isso acontece com “Requiem Para Um Sonho”, desde seu prosaico início, numa cena em tela dividida que lembra as experimentações de Brian De Palma, quando vemos o viciado Harry (Jared Leto, melhor que no oscarizado “Clube de Compras Dallas”) tomar, pela enésima vez, a televisão da mãe (Ellen Burstyn) a fim de vendê-la e usar o dinheiro para comprar drogas.

Adaptado do livro de Hubert Shelby Jr. o filme de Aronofsky divide-se em três capítulos graduais, incisivos e inevitáveis: “Verão”, “Outono” e “Inverno”, qual as estações do ano. Neles, testemunhamos a derrocada dos quatro protagonistas –Ellen Burstyn, Jared Leto, Jennifer Connelly e Marlon Mayans –deflagrada pelo vício.

Em “Verão”, acompanhamos Harry e Tyrone (Mayans) colhidos no êxtase de seu consumo de cocaína, na empolgação radiante em tornarem-se, de usuários para fornecedores, no fascînio de, em princípio, ver esse plano dando certo.

Acompanhamos também a linda Marion (Jennifer Connelly, e bota linda nisso!), namorada de Harry, às voltas com seu romance, com os pais ricos dos quais ela buscou se desvencilhar, com o sonho de abrir uma loja de roupas. E ainda há Sara, a mãe de Harry, cujo vício era até então apenas sua compulsão em ver TV –mais especificamente um programa picareta de compras e vendas.

O sonho de Sara –de aparecer, ela própria nesse programa –parece magicamente querer realizar-se quando ela recebe um inesperado telefonema dos negociadores de participações no programa. A ideia arrebatadora de ver-se na TV logo acende em Sara o desejo de entrar num antigo vestido vermelho no qual ela não cabe mais. Sara decide emagrecer. E após as penosas tentativas de fazer regime, ela cede à sugestão das amigas para tomar anfetaminas receitadas por um médico.

Em “Outono”, a espiral de tormento começa a dar as caras nas trajetórias de todos. Harry e Tyrone já não conseguem manter a prosperidade de antes, e uma guerra de gangues nos arredores de Coney Island torna as drogas que consomem escassas nas ruas, obrigando a própria Marion a fazer alguns sacrifícios que não queria, entre eles, pedir dinheiro ao sórdido e libidinoso personagem vivido por Sean Gullette (protagonista de “Pi”, o filme anterior de Aronofsky) a um custo doloroso e ultrajante. Sara, por sua vez, vai se tornando cada vez mais dependente das anfetaminas –a medida que o efeito desejado por elas vai rareando –sem notar as mudanças comportamentais e fisiológicas que as drogas prescritas lhe infligem.

Em “Inverno”, vemos tudo desandar. Harry e Tyrone resolvem ir para a Flórida negociar com os próprios fornecedores de drogas, mas jamais chegam lá de fato: Acabam encarcerados antes disso, sobretudo, Harry cujo braço já ostentava uma terrível pústula, resultado de frequentes picos de heroína sem qualquer prevenção. Marion, por fim, acaba se prostituindo como única maneira de prover o vício que lhe consome as entranhas. E Sara, perde em definitivo a sanidade –no que pode ser visto como um filme de terror sem os elementos do terror –singrando alucinada e decadente pelas ruas até ser internada e submetida a eletrochoques.

Na crítica corrosiva e implacável que traça da desumanização dos programas televisivos para com a própria audiência que alicia, e dos médicos negligentes que prescrevem drogas lícitas (mas não menos nocivas) aos pacientes mal tendo lhes examinado, o filme de Aronofsky se impõe como uma das mais corajosas e poderosas narrativas de denúncia do final da década de 1990, estabelecendo conceitos arrojados que demorariam ainda um bom tempo para serem assimilados pelo cinema mainstream. Não é intenção de Aronofsky ser necessariamente realista –embora muitos presumem que aqui ele o seja –seu filme é mais uma fábula transfiguradora da realidade, a capturar um horror subjetivo na inocência maculada de quatro personagens bem escritos, magnificamente bem dirigidos e interpretados, todos, de maneira comovente.

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