segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Possessão


 Numa análise à luz das circunstâncias vividas na época da realização deste filme (1981) por seu diretor, o polonês Andrzej Zulawski, podemos compreender sua desorientação com a interrupção abrupta de seu épico de ficção científica, “Globo de Prata”, em meados de 1977, pelas autoridades polonesas, e sua subsequente fuga da Polônia para a França, de posse de algum material do filme que conseguiu salvar (uns 60% de filme que, mais tarde, em 1988, terminou sendo lançado). Na esteira dessa desilusão profunda veio um pedido de divórcio da parte de sua esposa que desestabilizou o já emocionalmente desestabilizado Zulawski –e muito disso, dessa experiência paulatinamente traumática, podemos apreender, está traduzida em simbolismos inesgotáveis no desconcertante “Possessão”.

Vivido por Sam Neill, o protagonista é Mark (talvez, não por acaso, o nome de um dos protagonistas também de “Globo de Prata”) que, no início deste filme, se encontra ao fim de um longo período dedicado ao seu enigmático ofício –tudo indica que Mark é um espião, um agente secreto, morador de uma região no rebordo da Alemanha Ocidental do Muro de Berlim. Como o próprio Zulawski, Mark vive no olho do furacão de uma crise de tensões e desconfianças de natureza política. Seus superiores lhe indagam, antes de despachá-lo para uma vida doméstica supostamente mais pacata, se ele encontrou o “homem de meias cor-de-rosas” (Maximiliam Rüthlein, de “Gotcha!-Uma Arma do Barulho”) (?) –e o significado de tal metáfora, como inúmeras outras que surgirão fica, em grande medida, por conta do expectador.

Em família, Mark, no entanto, não encontra qualquer alento ou descanso –lá está a lhe esperar Anna (Isabelle Adjani, fabulosa em sua esquizofrenia), esposa de Mark e mãe de seu filho Bob (o pequeno Michael Hogben), capturado no fogo cruzado da tremenda crise conjugal do pai e da mãe. Anna se ressente de seu casamento com Mark, de seu abandono devido à profissão, e agora com sua volta, de sua presença ali. Anna deixa Mark e Bob, levando seu marido a experimentar um surto de abstinência que mais parece a desintoxicação de alguma droga. Mark sofre delirium tremes, não consegue viver nem funcionar em sociedade. A única coisa capaz de fazê-lo focar não num objetivo –longe de ser a obrigação para com o filho pequeno –é tentar descobrir o porque de Anna tê-lo abandonado.

No fundo ele já sabe (e o público, também): Anna tem um amante. A surpresa é descobrir que Anna também abandonou o amante, o pomposo e afetado Heinrich, vivido com adequada pomba e afetação por Heinz Bennent (de “O Tambor” e “Desejos Secretos”). Colocando um detetive particular (Carl Duering, de “Laranja Mecânica”) no encalço de Anna, Mark descobre que ela se refugiou de tudo e de todos num apartamento no centro de Berlim.

E é lá, nesse apartamento depauperado caindo aos pedaços, que Zulawski reserva para o público a revelação realmente desestabilizadora de “Possessão”: Anna tem agora, como amante, não algo humano, mas um monstro tentacular (!) –projetado pela mente lovecraftiana do designer de produção Carlo Rambaldi, que também concebeu o extraterrestre de “E.T.” –com o qual passa os dias fazem sexo (!). A criatura precisa se nutrir de sangue, por isso, Anna mata pessoas para alimentá-lo –a primeira vítima que, pelo menos, vemos, é o detetive particular.

Nada, em “Possessão”, no entanto, é tão simples –ao mesmo tempo em que tenta entender os propósitos inusitados da esposa, e acaba envolvido num turbilhão pouco compreensível de idas e vindas com criminosos, policiais e políticos, Mark vê uma jovem mulher, Helen, aparecer providencialmente para colocar as coisas de seu lar em alguma ordem, arrumar a casa e cuidar de seu filho –e Helen é, também ela, interpretada por Isabelle Adjani. É o cinema dos duplos, esse tema tão caro à Zulawski, se expressando por meio das considerações mais facilmente inteligíveis em “Possessão”.

Se toda a narrativa mirabolante e sufocante de “Possessão”, é uma tradução pessoal muito poética e peculiarmente visual de uma crise conjugal –passando por todos os exasperos físicos de um relacionamento, pelos altos e baixos impronunciáveis da relação à dois –então, os duplos (seja a angelical personagem de Adjani em contraponto à sua raivosa e inconformada protagonista; seja o monstro, cuja sanha por sexo e sangue humano leva à uma metamorfose na qual se torna, ele próprio, uma duplicata melhorada do Mark de Sam Neill) sugerem um meio ameno para esse relação seguir em frente, com suas duas metades renovadas em personas que procuraram deixar, na medida do possível, toda a bagagem tóxica para trás.

Tais subterfúgios adultos, porém, não enganam o pequeno e inocente Bob que, ao ouvir o novo ‘pai’ chegar à porta para encontrar a nova ‘mãe’ –numa cena banal e doméstica, mas construída por Zulawski para ser profundamente aterradora –apenas se joga dentro de sua banheira e clama: “Não abra!”

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