segunda-feira, 18 de março de 2019

A Balada de Buster Scruggs

A fina ironia tão característica dos Irmãos Coen comparece com seu habitual primor nesta produção da Netflix que reúne alguns de seus mais idiossincráticos elementos.
Como em “Bravura Indômita”, estamos aqui diante de um western –e na abordagem do gênero que visitam, os Coen o evocam de forma tão romântica quanto sarcástica –como em “E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?”, a narrativa se revela pontuada de música –que, no episódio inicial, ocasionalmente é cantada pelos próprios personagens –e como em praticamente todos os filmes sob sua assinatura, este aqui recebe dos Coen um tratamento primordial no qual a sina inapelável dos incautos seres humanos escolhidos para serem seus protagonistas ganha tanto em humor negro quanto em drama humano.

No primeiro dos seis formidáveis episódios que constituem este filme, acompanhamos a inusitada figura de Buster Scruggs que não somente dá nome ao filme, mas também oferece ao sensacional Tim Blake Nelson a chance de se mostrar um intérprete singular.
Scruggs singra o velho oeste americano ciente da fama de perigoso pistoleiro que construiu –e declamando essas circunstâncias em canções cantadas a céu aberto. Onde chega, porém, não é temor que Buster Scruggs suscita: Por seus trejeitos afáveis, seu modo de falar pitoresco e suas roupas caricatas e espalhafatosas –aspectos tornados impagáveis na atuação magnífica de Blake Nelson –ele só inspira petulância em seus desafetos; que ele enfileira, na forma de um cadáver após o outro!
Mas, como ele próprio canta na assombrosamente linda canção que encerra o episódio, há um final para tudo, e mesmo o pistoleiro mais ágil encontra, um dia, alguém com o gatilho mais rápido que o seu; e mesmo a voz mais bela, uma hora ou outra, há de encontrar uma cuja afinação a supere.

Interpretado por James Franco, o assaltante de bancos que protagoniza o segundo episódio experimenta uma sucessão de infortúnios tão bizarros que só poderiam vir mesmo da imaginação dos Coen: Capturado –por um estranho adversário revestido de panelas (?!) –ele é colocado à sombra de uma árvore para ser enforcado. Na hora H, seus algozes são mortos por índios que aparecem tão rapidamente quanto somem, deixando-o com a corda presa no pescoço, montado num cavalo que pode caminhar a qualquer momento –lembra muito a cena que inicia o filme “Maverick”, com Mel Gibson.

O terceiro episódio traz uma dose de intimismo e angústia com a qual volta e meia os Coen surpreendem o público. Liam Neeson é um dos dois membros de um pequeno espetáculo itinerante que singra os ambientes desolados do Oeste.
Entre aldeias gélidas –seja no clima, seja na receptividade social –e lugarejos angustiantes e angustiados, ele e um aleijado desprovido de braços e pernas (Harry Melling) apresentam sempre o mesmo monólogo –que a cada apresentação extrai menos moedas de seus expectadores.
O Velho Oeste mostrado não como o palco para tiroteios honrados e climáticos, mas como um mundo habitado por pessoas submetidas às mais terríveis e implacáveis privações, é o mote deste episódio: O personagem de Neeson aos poucos se ressente da situação de enfermeiro particular em circunstâncias para lá de adversas –e que chegam a lembrar um pouco “Monstros”, de Todd Browning –até que uma galinha adestrada o faz descobrir um modo mais simples de ganhar a vida; para azar do pobre aleijado...

Tom Waits é o protagonista do episódio seguinte, sobre um mineiro que se estabelece num vale até então harmonioso e livre da intervenção do homem. Seu objetivo é achar um veio de ouro puro que, por meio de seus metódicos conhecimentos de mineração, ele será capaz de encontrar através do rio local.
Os Coen, no entanto, reservam uma cruel e sarcástica guinada perto do final.

O quinto episódio acompanha a desafortunada vida da jovem Alice Longabaugh (a bela Zoe Kazan, na mais expressiva personagem feminina de todo o filme). Arrastada pelo malsucedido irmão para um iminente casamento arranjado como parte de seus negócios duvidosos, ela vai parar numa caravana –no melhor estilo “Cimarron” –em direção ao Oeste Selvagem. Entretanto, o irmão dele morre de cólera durante a penosa viagem deixando-a em maus lençóis: Sem ideia de como pagar o empregado contratado, de como cuidar do cachorrinho dele, o irritante Presidente Pierce (!), e basicamente sem ter onde ficar após terminada a longa viagem.
O destino sinaliza com alguma boa-venturança quando ela cai nas graças de Billy Knapp (Bill Heck), braço-direito do capitão da caravana (Grainger Hines).
A narrativa pitoresca e contida dos Coen constrói pacientemente um ensejo de relacionamento a brotar com espontaneidade entre a brutalidade que vinham retratando, só para desferir um soco na cara –recheado de ironia cruel –perto de seu desfecho.

O sexto e último episódio remete à “No Tempo das Diligências”, de John Ford, e de certa forma, também à “Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino. Ele se ambienta quase todo dentro de uma diligência designada a não parar por nada até chegar ao seu destino –no que pode ser enxergada como uma metáfora aberta a inúmeras intepretações.
Os cinco ocupantes lá dentro são pessoas de classes sociais tão distintas quanto o são seus aspectos, suas prosas e suas personalidades: Há o matuto falastrão (Chelcie Ross) de tão pouca experiência na interação social que mal se dá conta do quão tediosa e inconveniente é sua conversa; a senhora abastada (Tyne Daily) de modos mais perdulários que sua condição financeira permite; e o apostador inveterado (Saul Rubinek, de “Os Imperdoáveis”) cujo cinismo só não é maior que a covardia.
Em meio à conversação desnorteada e com frequência desregrada, os três não se dão conta de que os outros dois passageiros (Jonjo O’ Neil e Brendan Gleeson), bem mais comedidos e calados, são na realidade assassinos de aluguel –e se há algo, na concepção dos Coen, que iguala todos os seres humanos numa mesma manada de indivíduos assombrados é o medo da morte.
Dando a cada um desses notáveis episódios uma unidade narrativa que os torna únicos, os Irmãos Coen constroem uma antologia brilhante, áspera, árida e bem-humorada (apesar de tudo) da difícil vida no Oeste.

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