Dentre as inúmeras adaptações cinematográficas
de Stephen King, “O Iluminado”, de Stanley Kubrick, exerce um papel curioso: É
abertamente repudiado por seu autor devido às liberdades drásticas tomadas por
Kubrick em relação à obra original, ao mesmo tempo que é cultuado por cinéfilos
do mundo todo como um dos grandes filmes de terror de todos os tempos.
Daí, portanto, a dificuldade na abordagem do
diretor Mike Flanagan ao adaptar para cinema a sua continuação, “Doutor Sono”
–continuação esta que, até há bem pouco tempo, pouca gente sabia que existia:
Ser fiel ao trabalho de Stephen King, dando continuidade ao ‘seu’ “Iluminado”
–cujo desfecho é completamente distinto do filme –ou manter-se próximo da obra
de Kubrick?
Talvez por sua própria influência afetiva (não
há dúvidas de que, por sua orientação no terror, Flanagan cresceu inspirado
pelo filme), talvez pela lógica comercial (certamente, a grande maioria do
público tem mais familiaridade com a história contada no filme que na do
livro), Flanagan optou por fazer um filme que remete, em inúmeros sentidos ao
trabalho primordial de Kubrick.
É, assim, com todo o sabor de continuação do
filme de Stanley Kubrick (inclusive, com direito à referências explícitas,
rimas visuais diretas, aproveitamento da trilha sonora e até de enquadramentos
de câmera imediatamente relacionáveis), que o trabalho de Flanagan começa: Após
os trágicos eventos no Hotel Overlook, o pequeno ‘iluminado’ Danny Torrance e
sua mãe passam a morar na Flórida. Nos anos que se seguem, ele aprende a lidar
com seu dom –que lhe permite ver seguidamente os fantasmas que o assombravam –o
que não o impede de crescer transtornado. Com trinta e poucos anos, e já
interpretado por Ewan McGregor que faz um excelente trabalho, Dan Torrance
chega à cidadezinha de Frasier onde aparentemente encontra alguma paz em
serviços comunitários e reuniões de abstêmicos.
Todavia, numa cadência pausada, paciente e
minimalista que espelha a narrativa ampla e detalhada do livro de King, o filme
(que, não à toa, atinge suas três horas de duração), desde seu início,
acompanha outros personagens também: O grupo obscuro denominado o ‘Nó’; seres
sobrenaturais e virtualmente imortais, cujos poderes e vida eterna são
garantidos graças ao consumo constante do vapor que emana dos ‘iluminados’
quando morrem.
São como vampiros moldados dentro dessa
mitologia concebida por Stephen King.
A líder deles, a mais poderosa e onisciente, é
Rose (a sensacional Rebecca Ferguson, numa personagem cujo visual remete à
falecida cantora do grupo “4 Non Blondes”, dos anos 1990) tão sedutora quando
amedrontadora.
Sem pressa e sem intenção de evitar os inúmeros
detalhes que povoam a premissa, o diretor Flanagan acompanha o protagonista e
seus antagonistas por anos, numa introdução que se estende muito mais do que
estamos habituados em cinema, quando então, é apresentada a personagem que
fornece o gatilho real para a trama. A jovem Abra (Kyliegh Curran), uma das
poucas ‘iluminadas’ –já que, por alguma razão, eles estão escasseando no mundo
–detentora de um poder fenomenal; o que significa vapor mais que suficiente
para saciar a fome que começa a levar os indivíduos do ‘Nó’.
Enquanto Rose tenta descobrir o encalço de
Abra, ela estabelece um vínculo com Dan que achava ter deixado para trás os
problemas acarretados por sua ‘iluminação’.
Contudo, Rose e o ‘Nó’ representam um perigo do
qual ele terá de salvar Abra –e para confrontar Rose, ele precisa revisitar
forças sobrenaturais que podem significar um perigo para ela também. Ou seja:
Regressar até o Hotel Overlook, e submeter-se às mesmas assombrações (e
memórias) de antes.
Nesse trecho final –quando nos transporta de
volta à ambientação do filme original –o diretor Flanagan dá completa e
absoluta vazão à sua admiração por Stanley Kubrick, emulando diversas
sequências memoráveis de “O Iluminado”, com direito à recriação de algumas
cenas –de forma até mais minimalista do que o próprio Steven Spielberg (amigo
pessoal de Kubrick) já havia feito numa sequência de “Jogador Nº 1” –além da
reescalação de novos atores para interpretar o também ‘iluminado’ Dick
Hallorann (Carl Lumbly substituindo Scatman Crothers), a mãe Wendy Torrance
(Alexandra Essoe substituindo Shelley Duvall) e até mesmo o pai Jack Torrance
(Henry Thomas substituindo o insubstituível Jack Nicholson).
Uma carta de amor implícita à obra
extraordinária de Stanley Kubrick, “Doutor Sono” usa de seus desdobramentos
para, ao final, honrar seu autor, Stephen King, e manejar os elementos de forma
à chegar até o desfecho que ele tinha, de fato, planejado para sua criação.
No final, o talento, o bom
senso, e o profundo entendimento do gênero do diretor Mike Flanagan conseguiu
respeitar e homenagear os dois gênios criativos por trás de “O Iluminado” –por
mais que, durante um longo tempo, suas visões tivessem se mantido
incompatíveis.
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