Quando assistimos “Robocop” sabendo que o
protagonista poderia ter sido interpretado por Rutger Hauer, nos pegamos o
tempo todo indagando quão ainda mais sensacional não teria sido se o astro
holandês não tivesse se desentendido com o diretor também holandês Paul
Verhoeven, em algum momento das filmagens do ótimo “Conquista Sangrenta”
interrompendo uma parceria que trouxe ambos da Holanda-natal para os EUA.
No lugar de Hauer, foi escolhido Peter Weller
que fez um trabalho memorável o suficiente para que sua carreira fosse marcada
para todo o sempre pelo personagem.
O começo do filme já deixa bem claro que a
migração para o cinema hollywoodiano comercial não amenizou o sarcasmo inerente
ao estilo do diretor: Um noticiário de TV, pulsante de ironia e humor negro,
mostra dois âncoras de telejornal relatando trágicas notícias ao redor do mundo
com frivolidade e até certa indiferença –impressionante como algumas dessas
notícias, fantasiosas para os anos 1980 de então, soam até bem plausíveis para
os dias de hoje... –é aí que descobrimos que a força policial naquele futuro
não é mais um orgão federal, mas uma empresa privada, e enquanto os policias,
seus funcionários, discutem a possibilidade de uma greve, a OCP (Omni Consumer
Products), empresa que lhe fornece equipamento, já trabalha num projeto para
substituir a mão de obra humana, por assim dizer.
A ideia inicial, vinda do vilanesco
vice-presidente da companhia Dick Jones (Ronny Cox, de “Amargo Pesadelo”), um
andróide denominado ED-209, dá completamente errado, fulminando a tiros um dos
executivos da OCP; entra em cena, então, o engravatado Bob Morton (Miguel
Ferrer, de “Vingança”) com a alternativa conhecida como Robocop: Um ciborgue,
meio homem, meio máquina, criado a partir dos restos mortais de um policial,
garantindo um produto mecanicamente eficiente, porém, com instinto humano para
agir.
Não tarda a surgir, então, a cobaia perfeita:
Recém-integrado ao seu distrito, o policial Murphy (Peter Weller), ao lado de
sua parceira, a oficial Lewis (Nancy Allen, de “Vestida Para Matar”), persegue
um bando de criminosos liderados pelo pretendente à chefão do crime Clarence
Boddicker (Kurtwood Smith, de “Sociedade dos Poetas Mortos”), acabando
emboscado e morto –numa cena extremamente sangrenta e sádica, indicativa dos
padrões que diferenciavam bastante o diretor Verhoeven de outros artesões mais
contidos e convencionais do período.
Praticamente morto, Murphy tem sua consciência,
e partes irrisórias do corpo preservadas, integrando assim o Projeto Robocop:
Agora convertido em um ciborgue (e com suas memórias apagadas), ele habita um
poderoso corpo sintético, regido por programações avançadas implantadas em seu
próprio cérebro.
O novo policial da chamada Velha Detroit é
assim efetivo, eficaz e implacável –e essencialmente impessoal, também, como
fica claro quando ele salva uma mulher de uma tentativa de estupro; o Robocop é
infalível na retaliação contra os criminosos, mas não tem qualquer respaldo
emocional ou afetivo a oferecer à pessoa ali desamparada –e nesse registro das
mazelas sociais de amanhã, hoje e sempre em colisão com um conceito tão
formidável de ficção científica, o diretor Verhoevem cria um comentário cheio
de humor e refinamento sobre as sementes do totalitarismo que sempre poluíram
os discursos progressistas norte-americanos.
Em seu visual deliberadamente fantástico, “Robocop”
até parece uma adaptação de histórias em quadrinhos, embora não o seja, mas é
certamente pioneiro em relação ao cinema comercial, ao usar de seu formato
escapista para materializar uma trama carregada de observações políticas: As
empresas, sobretudo, a OCP almejam controlar a criminalidade exclusivamente
para que sejam iniciadas as obras para a construção de Delta City, a cidade
futurista erguida sobre os escombros da Velha Detroit, o que faz de Robocop e
seu desempenho no combate ao crime apenas uma peça no jogo corporativo.
E por isso, quando suas memórias e sua
humanidade em algum momento começam a regressar, ele acaba descobrindo o
envolvimento do criminoso Clarence com Dick, o que pode colocar toda a força
policial contra ele.
Um clássico da década de 1980 com todas as
letras, “Robocop” é mais um título a integrar a brilhante filmografia de Paul
Verhoeven que, a partir dele, revelou-se também um grande diretor de obras de
ficção científica –outros belos exemplares foram “O Vingador do Futuro”, com
Arnold Schwarzenegger, e “Tropas Estrelares” –aqui, ele assimila com
inteligência certos elementos que remetem à linguagem dos quadrinhos,
evidenciando em diversos momentos simbólicos a predisposição heróica
(messiânica até) do Robocop e seu imponente visual.
Uma pena que, na franquia
claudicante que originou, este magistral primeiro filme continue sendo a
honrosa exceção: Todas as continuações, derivações e imitações feitas de
“Robocop” nos anos seguintes foram incapazes de igualar sua arrojada mescla de
ação, futurismo e crítica social.
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