sexta-feira, 5 de junho de 2020

Robocop

Quando assistimos “Robocop” sabendo que o protagonista poderia ter sido interpretado por Rutger Hauer, nos pegamos o tempo todo indagando quão ainda mais sensacional não teria sido se o astro holandês não tivesse se desentendido com o diretor também holandês Paul Verhoeven, em algum momento das filmagens do ótimo “Conquista Sangrenta” interrompendo uma parceria que trouxe ambos da Holanda-natal para os EUA.
No lugar de Hauer, foi escolhido Peter Weller que fez um trabalho memorável o suficiente para que sua carreira fosse marcada para todo o sempre pelo personagem.
O começo do filme já deixa bem claro que a migração para o cinema hollywoodiano comercial não amenizou o sarcasmo inerente ao estilo do diretor: Um noticiário de TV, pulsante de ironia e humor negro, mostra dois âncoras de telejornal relatando trágicas notícias ao redor do mundo com frivolidade e até certa indiferença –impressionante como algumas dessas notícias, fantasiosas para os anos 1980 de então, soam até bem plausíveis para os dias de hoje... –é aí que descobrimos que a força policial naquele futuro não é mais um orgão federal, mas uma empresa privada, e enquanto os policias, seus funcionários, discutem a possibilidade de uma greve, a OCP (Omni Consumer Products), empresa que lhe fornece equipamento, já trabalha num projeto para substituir a mão de obra humana, por assim dizer.
A ideia inicial, vinda do vilanesco vice-presidente da companhia Dick Jones (Ronny Cox, de “Amargo Pesadelo”), um andróide denominado ED-209, dá completamente errado, fulminando a tiros um dos executivos da OCP; entra em cena, então, o engravatado Bob Morton (Miguel Ferrer, de “Vingança”) com a alternativa conhecida como Robocop: Um ciborgue, meio homem, meio máquina, criado a partir dos restos mortais de um policial, garantindo um produto mecanicamente eficiente, porém, com instinto humano para agir.
Não tarda a surgir, então, a cobaia perfeita: Recém-integrado ao seu distrito, o policial Murphy (Peter Weller), ao lado de sua parceira, a oficial Lewis (Nancy Allen, de “Vestida Para Matar”), persegue um bando de criminosos liderados pelo pretendente à chefão do crime Clarence Boddicker (Kurtwood Smith, de “Sociedade dos Poetas Mortos”), acabando emboscado e morto –numa cena extremamente sangrenta e sádica, indicativa dos padrões que diferenciavam bastante o diretor Verhoeven de outros artesões mais contidos e convencionais do período.
Praticamente morto, Murphy tem sua consciência, e partes irrisórias do corpo preservadas, integrando assim o Projeto Robocop: Agora convertido em um ciborgue (e com suas memórias apagadas), ele habita um poderoso corpo sintético, regido por programações avançadas implantadas em seu próprio cérebro.
O novo policial da chamada Velha Detroit é assim efetivo, eficaz e implacável –e essencialmente impessoal, também, como fica claro quando ele salva uma mulher de uma tentativa de estupro; o Robocop é infalível na retaliação contra os criminosos, mas não tem qualquer respaldo emocional ou afetivo a oferecer à pessoa ali desamparada –e nesse registro das mazelas sociais de amanhã, hoje e sempre em colisão com um conceito tão formidável de ficção científica, o diretor Verhoevem cria um comentário cheio de humor e refinamento sobre as sementes do totalitarismo que sempre poluíram os discursos progressistas norte-americanos.
Em seu visual deliberadamente fantástico, “Robocop” até parece uma adaptação de histórias em quadrinhos, embora não o seja, mas é certamente pioneiro em relação ao cinema comercial, ao usar de seu formato escapista para materializar uma trama carregada de observações políticas: As empresas, sobretudo, a OCP almejam controlar a criminalidade exclusivamente para que sejam iniciadas as obras para a construção de Delta City, a cidade futurista erguida sobre os escombros da Velha Detroit, o que faz de Robocop e seu desempenho no combate ao crime apenas uma peça no jogo corporativo.
E por isso, quando suas memórias e sua humanidade em algum momento começam a regressar, ele acaba descobrindo o envolvimento do criminoso Clarence com Dick, o que pode colocar toda a força policial contra ele.
Um clássico da década de 1980 com todas as letras, “Robocop” é mais um título a integrar a brilhante filmografia de Paul Verhoeven que, a partir dele, revelou-se também um grande diretor de obras de ficção científica –outros belos exemplares foram “O Vingador do Futuro”, com Arnold Schwarzenegger, e “Tropas Estrelares” –aqui, ele assimila com inteligência certos elementos que remetem à linguagem dos quadrinhos, evidenciando em diversos momentos simbólicos a predisposição heróica (messiânica até) do Robocop e seu imponente visual.
Uma pena que, na franquia claudicante que originou, este magistral primeiro filme continue sendo a honrosa exceção: Todas as continuações, derivações e imitações feitas de “Robocop” nos anos seguintes foram incapazes de igualar sua arrojada mescla de ação, futurismo e crítica social.

Nenhum comentário:

Postar um comentário