sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Formiguinhaz


 Nos anos de transição da década de 1990 para 2000, o estúdio Dreamworks, fundado por Steven Spielberg, Jeffrey Katzenberg e David Geffen, entrou numa série de projetos, disposto a fazer estardalhaço no cinema. Certamente, um desses projetos, “Formiguinhaz”, haveria de envolver animação, a grande especialidade do produtor Katzenberg –que esteve a frente da reformulação dos Estúdios Disney com “A Pequena Sereia” e “A Bela e A Fera”, dez anos antes. A ironia foi que “Formiguinhaz”, numa dessas coincidências inconvenientes que vez ou outra acontece em Hollywood, estreou na mesma temporada que outra animação, também ela tendo o mundo miniatura dos insetos como foco central, “Vida de Inseto”, da Pixar.

Na comparação com o divertido e descontraído trabalho da Pixar, “Formiguinhaz” é pleno de escolhas curiosas, indicativas do quanto os realizadores vão muito além de entregar uma obra para crianças, mas uma produção pontuada por detalhes que chamam a atenção dos adultos.

A começar pela escolha de Woody Allen para dar voz ao personagem principal, a formiga operária Z que, no início do filme, surge num divã, relatando suas neuroses num tom hesitante e tímido que Allen domina completamente. Com isso parece haver uma relação estabelecida pelos realizadores entre as formigas e o povo de Nova York –cosmopolitas, numerosos, incapazes de prestar atenção uns nos outros, colhidos numa série de ciclos viciosos e, como Z, sujeitos a ocasionais vazios existenciais.

Z se pergunta porque deve ser mais um dentre tantos. A mediocridade o incomoda quando parece não perturbar todos os outros, indiferentes e dóceis para com sua rotina.

Assim, Z propõe uma ligeira troca com seu melhor amigo, Weaver (voz de Sylvester Stallone): Ele, que é soldado, trocará de lugar com Z, e assim saberá como é o dia-a-dia de um operário –enquanto que Z poderá experimentar a emoção diferenciada de partir em batalha. Para o azar de Z, porém, o General Mandíbula (Gene Hackman) organiza uma ataque aos cupins, moradores de um formigueiro próximo –repare na cena em que Z encontra a cabeça decepada, mas ainda viva e falante, de um amigo no campo de batalha (!), exemplar do quanto a animação não ameniza em cenas até um tanto violentas.

Por suas dimensões reduzidas para um soldado, Z acaba sendo o único sobreviventes da batalha –o que coloca  certo imprevisto nos planos do General Mandíbula. Quando seu embuste é descoberto, contudo, resta a Z improvisar e, com isso, ele escapa para fora do formigueiro junto da Princesa Bala a quem tentou fazer, muito atrapalhadamente, de refém.

Paralelamente, a animação acompanha então a aventura de Z e da Princesa Bala às voltas com os perigos do agigantado mundo exterior –onde testemunhamos mais cenas intensamente violentas, como a cauterização de uma formiga com o raio solar de uma lupa; ou a morte de um inseto fêmea esmagada por meio de um mata-moscas –e a crescente fama de Z entre seus pares do formigueiro, em meio aos quais corre a história da audácia do operário em decidir ocupar o lugar de um soldado, e tornar-se herói de guerra com isso.

Vai ficando também claro o plano maligno do General Mandíbula, e nele, a mensagem de individualismo difundida nas peripécias de Z entre as demais formigas acaba sendo prejudicial.

Surpreendente devido ao seu sucesso de bilheteria na época de seu lançamento, “Formiguinhaz” não aparenta obter uma conciliação na preferência de público; sua trama ostenta complexidades demais para crianças pequenas, seu senso estético (ainda que obedeça os padrões da animações em geral) constrói cenas um tanto quanto particulares em seu realismo, seu elenco inacreditável (onde, é bom lembrar, somente as vozes são de fato aproveitadas) sinalizam a vontade de impressionar a parte mais crescida da plateia, a flagrante humanização dos personagens insetos proporciona certa estranheza, mais comum em animações europeias, e sua mensagem final –na sofisticação de sua abordagem –parece inacessível ao seu suposto público-alvo.

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