Para os padrões de representatividade politicamente corretos de hoje, a existência de “A Canção do Sul” é praticamente uma ofensa. E o fato da produção ser oriunda dos Estúdios Disney –talvez, a mais emblemática instituição de entretenimento voltado à família e aos bons costumes –é praticamente uma heresia!
Lançado em 1946, numa época longínqua onde
conceitos e valores atuais não estavam ainda em voga, “A Canção do Sul”
mesclava a inocência das histórias infantis com o ímpeto de retratar contornos
sociais de seu tempo através da ótica particular de seus realizadores,
acompanhado de um apuro técnico impressionante até para os dias de hoje: “A
Canção do Sul” antecipou, em décadas (!), a inovação de “Uma Cilada Para Roger Rabbit”, ao juntar atores e personagens de animação em cena (inclusive
trazendo, também ele, o personagem de um coelho, Quincas!).
Entretanto, o elemento que tirou “A Canção do
Sul” de seu esquecimento eventual, nos últimos anos, e o tornou infame não tem
nada a ver com seu aparato visual, nem com sua vitória na categoria de Melhor
Canção Original no Oscar 1948, mas sim com o curioso ponto de vista adotado
para narrar sua história: O das pessoas do Sul dos EUA, escravagistas
declarados, que adentraram a Guerra de Secessão a fim de lutar em favor do
regime escravocrata.
Naquele viés de inocência inerente a uma
produção Disney, o filme de Wilfred Jackson não apenas retratava o Sul como um
lugar de gente pacata, hospitaleira e benevolente, como também vai muito além;
eles, e seu modo de vida, soam na narrativa com absoluta normalidade, cheios de
razão de ser.
“A Canção do Sul” é sobre os jovens Johnny
(Bobby Driscoll) e Ginny (Luana Patten). E sobre como o iminente divórcio de
sua mãe (Ruth Warrick, de “Cidadão Kane”) ameaça estilhaçar precocemente sua
pureza de infância. A mim de contornar essa desilusão, eis que surge Tio Remus
(James Baskett) na narrativa. Negro, escravo da propriedade onde as crianças
moram –ainda que esse fato permaneça sempre subentendido –Tio Remus é um
contador de histórias nato. E com isso, introduz às crianças as aventuras do coelho
Quincas, sempre às voltas com o perigo representado por seus algozes, o
ardiloso João Honesto (uma raposa) e o truculento Zé Grandão (um urso). Esses
momentos inserem sequências episódicas de animação ao longo da trama em live-action; somente na sequência final
(fabulosamente bem executada), a animação e o filme real acabam se mesclando.
Foram, no entanto, os subtextos de “A Canção do
Sul” que, com o tempo, passaram a alarmar cada vez mais e mais cinéfilos: Não
obstante um famigerado subgênero do qual ele é pioneiros, o magical negro (onde um personagem sempre
interpretado por um ator negro surge do nada para proporcionar sabedoria e
soluções fáceis aos transtornos do protagonista branco), “A Canção do Sul”
parece tentar justapor as sequências animadas como uma espécie de fuga da
realidade, por meio da qual o benevolente Remus protege os pequeninos das
verdades duras da realidade e lhes ensina lições valiosas (tal e qual um bom e
velho filme da Disney...), entretanto, há algo de estranhamente tóxico, e até
contraditório em muitos momentos. Se em determinado trecho ele parece sugerir
que nossos papéis da sociedade são pré-determinados e devemos nos sujeitar a
esse fato (o escravo obediente e feliz retratado em outros filmes como “E OVento Levou”, cuja oscarizada Hattie McDaniel também integra este elenco), em outros,
ele faz uso da lábia e da esperteza como uma forma de lograr ingenuamente (e
temporariamente) os opressores. Se num ponto ele é a alegre figura que acata as
ordens dos pais e conforta a aflição dos filhos, noutro, o conteúdo de suas
estórias é visto como prejudicial aos pequenos –e nessa crença unilateral de
suposta bondade, percebemos que o personagem não sabe realmente quem é, nem o
que realmente deseja.
Até mesmo no breve momento em que Remus aparece
adquirir certa consciência de que o único caminho para uma vida melhor seja
partir dali, algo vem para impedi-lo de realizar essa intenção (o acidente do
menino) surgindo, na trama, como uma providência, em última instância,
positiva, pois impediu Remus de ir embora.
Talvez –e eu digo ‘talvez’ porque “A Canção do
Sul” pertence a uma época longínqua demais para se poder traçar certezas
absolutas acerca das orientações subliminares em seu processo de criação –os vilões
de animação, João Honesto e Zé Grandão, simbolizem o homem branco em suas
intenções nada lisonjeiras carregadas de perfídia (nos olhos traiçoeiros da
raposa) e de genuína incapacidade para aceitar algo que seja diferente (na
postura irredutível e acéfala do urso), o que colocaria Quincas, o coelho
esperto e perspicaz, como uma variação do próprio Tio Remus e sua triste e
mal-fadada crença na agilidade para desvencilhar-se por toda a vida dos ditames
do homem branco.
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