Em 2013, o diretor Hayao Miyasaki anunciou uma aposentadoria e afastou-se do cinema com a animação “Vidas Ao Vento”, contudo, o ímpeto criativo nunca deixou de queimar em seu peito e, eis que dez anos depois, Miyasaki lançou uma nova produção, seu retorno às telas de cinema, o belíssimo “O Menino e A Garça”, e com isso, terminou ganhando o Oscar 2024 de Melhor Longa Animado, cerca de vinte e um anos depois de ter vencido o mesmo Oscar pela primeira vez.
É curioso notarmos que, tal e qual autores
maísculos do cinema live-action
mundial como Woody Allen, Federico Fellini, Luis Buñuel ou Ingmar Bergman,
Miyasaki parece tornar a refletir sobre um mesmo tema, uma mesma premissa
básica, e dela extrair sempre algo absolutamente novo. Uma vez mais, “O Menino
e A Garça” é sobre a jornada física e metafísica de um herói-mirim (como
“Nausicaä do Vale do Vento”), uma vez mais há a descoberta gradual, ainda que
irreversível e implacável, de um mundo mágico que espreita nas sombras (como
“Meu Amigo Totoro”), uma vez mais há uma tentativa de regressar à realidade por
parte das crianças, a levar os desamparados adultos consigo (como “A Viagem de Chihiro”) e, uma vez mais, há a Segunda Guerra Mundial como tênue pano de fundo
(como no próprio “Vidas Ao Vento”), um fantasma que Miyasaki e o cinema japonês
como um todo não conseguem exorcisar.
Prematuramente amadurecido pelo trauma de ter
perdido a mãe (num bombardeio, durante a Segunda Guerra, ao hospital que ela
cuidava), o garoto Mahito é levado pelo pai (um rico fabricante de aeronaves) à
uma nova morada no campo, onde conhecerá sua nova madrasta, Natsuko, que já
está grávida. Diferente da convenção dos contos de fadas, Natsuko não é uma
madrasta má, pelo contrário, é benevolente, carinhosa e amável –e, por vezes,
notavelmente, parecida com a mãe que Mahito perdeu!
No entanto, o menino, introspectivo e arredio,
só se deixa interessar mesmo pela estranha construção em forma de torre nas
proximidades da mansão campestre da família –uma edificação abandonada dos
tempos antigos que guarda uma história que os adultos exitam em lhe contar.
Uma garça parece ter feito ninho lá e, nos dias
que se seguem, o animal demonstra incomum obsessão por Mahito, a ponto de, em
determinado momento, começar até a clamar seu nome (!), pedindo que vá até a
construção. A narrativa de Myiasaki demanda um tempo considerável e pouco usual
para as realizações atuais nessa primeira parte, em que a vida doméstica e
trivial de Mahito e Natsuko seja retratada, para então, arremessar seus
protagonistas no mundo mágico que sempre foi sua proposta: Quando Natsuko
desaparece, Mahito sabe que as respostas estarão com a garça e o portal para esse
outro mundo que ela parece guardar.
É nesse mundo, uma vez invadido, que Myiasaki
dá vazão à sua criatividade visual, modificando conceitos e construindo uma
jornada de sonho e surrealismo, entretanto, como é inerente ao seu fascinante
processo criativo, nunca destituído de uma lógica interna que parece gerar, com
poesia, humanismo e rigor, a integridade da história que ele quer contar.
Nesse outro mundo –onde pessoas vivas e as já
falecidas parecem co-existir numa irônica manobra de distorção do tempo –o perigo
espreita na forma de curiosos periquitos humanóides (!?) que, convertidos em
monstrengos brutamontes, não resistem à vontade por carne humana. É lá, no
entanto, que Mahito conhece a jovem Himi, garota dotada da inusitada capacidade
de controlar o fogo e que, nos tortuosos mistérios que pouco a pouco a
narrativa de Myiasaki irá revelar, termina sendo a mãe de Mahito (!), a irmã de
Natsuko (!!) e a sobrinha do velho poderoso (sempre chamado de Tio-Avô) cujos
sonhos, através da magia, moldaram aquele mundo, ainda que desvirtuando, com
sentimentos de guerra e de revolução, suas aspirações mais puras. Entretanto, o
Tio-vô está velho e, na consciência do fim que se aproxima, ele elaborou seu
último e mais arrojado artifício a fim de converter Mahito em seu sucessor,
ocupando seu lugar como uma espécie de maestro mágico daquele mundo.
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