domingo, 7 de julho de 2024

O Menino e A Garça


 Em 2013, o diretor Hayao Miyasaki anunciou uma aposentadoria e afastou-se do cinema com a animação “Vidas Ao Vento”, contudo, o ímpeto criativo nunca deixou de queimar em seu peito e, eis que dez anos depois, Miyasaki lançou uma nova produção, seu retorno às telas de cinema, o belíssimo “O Menino e A Garça”, e com isso, terminou ganhando o Oscar 2024 de Melhor Longa Animado, cerca de vinte e um anos depois de ter vencido o mesmo Oscar pela primeira vez.

É curioso notarmos que, tal e qual autores maísculos do cinema live-action mundial como Woody Allen, Federico Fellini, Luis Buñuel ou Ingmar Bergman, Miyasaki parece tornar a refletir sobre um mesmo tema, uma mesma premissa básica, e dela extrair sempre algo absolutamente novo. Uma vez mais, “O Menino e A Garça” é sobre a jornada física e metafísica de um herói-mirim (como “Nausicaä do Vale do Vento”), uma vez mais há a descoberta gradual, ainda que irreversível e implacável, de um mundo mágico que espreita nas sombras (como “Meu Amigo Totoro”), uma vez mais há uma tentativa de regressar à realidade por parte das crianças, a levar os desamparados adultos consigo (como “A Viagem de Chihiro”) e, uma vez mais, há a Segunda Guerra Mundial como tênue pano de fundo (como no próprio “Vidas Ao Vento”), um fantasma que Miyasaki e o cinema japonês como um todo não conseguem exorcisar.

Prematuramente amadurecido pelo trauma de ter perdido a mãe (num bombardeio, durante a Segunda Guerra, ao hospital que ela cuidava), o garoto Mahito é levado pelo pai (um rico fabricante de aeronaves) à uma nova morada no campo, onde conhecerá sua nova madrasta, Natsuko, que já está grávida. Diferente da convenção dos contos de fadas, Natsuko não é uma madrasta má, pelo contrário, é benevolente, carinhosa e amável –e, por vezes, notavelmente, parecida com a mãe que Mahito perdeu!

No entanto, o menino, introspectivo e arredio, só se deixa interessar mesmo pela estranha construção em forma de torre nas proximidades da mansão campestre da família –uma edificação abandonada dos tempos antigos que guarda uma história que os adultos exitam em lhe contar.

Uma garça parece ter feito ninho lá e, nos dias que se seguem, o animal demonstra incomum obsessão por Mahito, a ponto de, em determinado momento, começar até a clamar seu nome (!), pedindo que vá até a construção. A narrativa de Myiasaki demanda um tempo considerável e pouco usual para as realizações atuais nessa primeira parte, em que a vida doméstica e trivial de Mahito e Natsuko seja retratada, para então, arremessar seus protagonistas no mundo mágico que sempre foi sua proposta: Quando Natsuko desaparece, Mahito sabe que as respostas estarão com a garça e o portal para esse outro mundo que ela parece guardar.

É nesse mundo, uma vez invadido, que Myiasaki dá vazão à sua criatividade visual, modificando conceitos e construindo uma jornada de sonho e surrealismo, entretanto, como é inerente ao seu fascinante processo criativo, nunca destituído de uma lógica interna que parece gerar, com poesia, humanismo e rigor, a integridade da história que ele quer contar.

Nesse outro mundo –onde pessoas vivas e as já falecidas parecem co-existir numa irônica manobra de distorção do tempo –o perigo espreita na forma de curiosos periquitos humanóides (!?) que, convertidos em monstrengos brutamontes, não resistem à vontade por carne humana. É lá, no entanto, que Mahito conhece a jovem Himi, garota dotada da inusitada capacidade de controlar o fogo e que, nos tortuosos mistérios que pouco a pouco a narrativa de Myiasaki irá revelar, termina sendo a mãe de Mahito (!), a irmã de Natsuko (!!) e a sobrinha do velho poderoso (sempre chamado de Tio-Avô) cujos sonhos, através da magia, moldaram aquele mundo, ainda que desvirtuando, com sentimentos de guerra e de revolução, suas aspirações mais puras. Entretanto, o Tio-vô está velho e, na consciência do fim que se aproxima, ele elaborou seu último e mais arrojado artifício a fim de converter Mahito em seu sucessor, ocupando seu lugar como uma espécie de maestro mágico daquele mundo.

Vibrante, adornado do início ao fim de cenas acachapantes para os olhos e concebido com um rigor artesanal de animação à moda antiga que possivelmente irá entrar em choque com os olhares acostumados às impessoais animações digitais da atualidade, “O Menino e A Garça” é Hayao Myiasaki em estado puro –um lembrete crucial e fundamental da importância que seu gênio e sua arte singular tiveram para a animação e para o cinema do mundo inteiro.

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