sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Mistérios da Carne


 Uma obra intimista de conotações sexuais das mais ultrajantes, “Mysterious Skin” é a realização de repercussão mais expressiva, por assim dizer, do canadense Gregg Araki –um diretor de estilo visualmente peculiar cuja filmografia traz um enfoque na disfuncionalidade e nos desvios comportamentais obscuros ocultos na normalidade da classe média. O que torna “Mysterious Skin” um filme tão incômodo, perturbador e, no final das contas, profundamente triste é seu tema central e sua despudora e audaciosa execução.

Para melhor entender essas circunstâncias vamos à história: Adaptado do livro de Scott Heim, “Mysterious Skin” acompanha a trajetória paralela –ou seja, durante muito tempo, nunca se cruzam –de dois jovens protagonistas, ambos com oito anos de idade: O retraído Brian, péssimo em beisebol e, por isso, alvo de imenso desprezo do pai; e o mais descolado Neil, por sua vez, o melhor atleta do mesmo time de beisebol. Brian vive com o pai (Chris Mulkey, de “The Hidden-O Escondido”) e a mãe (Lisa Long, de “Do Que As Mulheres Gostam”); Neil mora apenas com sua mãe promíscua (Elisabeth Shue) e acaba fazendo do treinador (Bill Sage, de “Tudo Por Um Sonho”) inicialmente uma espécie de figura paterna. Entretanto, o que de fato entrelaça os dois meninos é –como afirma o título –um mistério que assim, misterioso, permanecerá durante quase todo o filme: Quando contava apenas oito anos (interpretado então pelo pequeno George Webster), Brian teve um lapso de memória. Cerca de cinco horas simplesmente desapareceram de sua mente, quando então ele apareceu em casa com o nariz todo ensanguentado –esse detalhe, e mais desmaios súbitos e pesadelos estranhos envolvendo alienígenas e abduções passam a ser recorrentes para Brian nos dez anos seguintes (!). Já, a situação de Neil (vivido na fase infantil pelo ótimo Chase Ellison) é bem mais explícita: Fica claro logo de imediato que, ao se tornar uma visita frequente na casa de seu treinador –em parte, devido à negligência materna –Neil é abusado sexualmente.

A forma com que o diretor Araki expõe o ato é, provavelmente, o elemento mais desestabilizador do filme: As cenas, realizadas com certa naturalidade e numa atmosfera onírica de delírio, usual ao estilo do diretor, incluem as próprias crianças interpretando o sinistro desenlace sexual, sempre com a câmera em close em seus rostos –nada acontece factualmente para que vejamos, mas, consequentemente a encenação deixa absolutamente exposto e inquestionavelmente sugerido o terrível horror que se sucedeu.

Anos se passam, Brian e Neil seguem trajetórias diferentes, embora, igualmente transfiguradas pela experiência do abuso: Brian cresce recluso, introspectivo e anti-social, obcecado por aparições de O.V.N.I.s, crente de que foi algo assim que lhe acometeu na infância. Neil se torna, de livre e espontânea vontade, uma espécie de garoto de programa, numa busca não muito disfarçada por auto-destruição, ou uma deterioração gradual de si mesmo. Já crescidos (e interpretados respectivamente por Brady Corbet e Joseph Gordon-Levitt), Brian e Neil têm suas trajetórias prestes, enfim, à se encontrar –e disso, a narrativa de Gregg Araki parece fazer a grande fonte de expectativa e de certo suspense a partir da metade do filme até seu final, protelando esse encontro até o ponto do intolerável; ao observar uma foto antiga do time de beisebol, após conversas com uma garota, também ela certa de que foi abduzida por alienígenas (Mary Lynn Rajskub, de “Pequena Miss Sunshine”), Brian descobre que Neil é o garoto que surgia junto com ele nos breves lampejos misteriosos daquilo que lhe aconteceu.

Quando finalmente encontra a casa de Neil, Brian descobre que ele mudou-se, no mesmo dia, para Nova York, onde foi morar com a melhor amiga Wendy (Michelle Trachtenberg, de “Eurotrip-Passaporte Para A Confusão”), e lá começa a trabalhar como michê. Ao longo do ano que se segue, enquanto Araki alimenta a expectativa do público pelo encontro dos dois protagonistas, Brian se aproxima do melhor amigo de Neil, Eric (Jeff Licon), enquanto o próprio Neil encontra parceiros sexuais cada vez mais sórdidos nas noites de Nova York –entre eles, um HIV positivo e carente interpretado por Billy Drago (de “Seven-Os Sete Crimes Capitais”) e um homossexual truculento e homofóbico.

Deprimente e desconfortável, esta obra de Gregg Araki tem o mérito dúbio de mostrar os efeitos e consequências da sexualidade em crianças –algo raro no cinema norte-americano, mas comum em obras européias de décadas passadas –num trabalho que será indigesto para inúmeros públicos. É necessário estar em sintonia com a pra lá de desigual filmografia de Gregg Araki para compreender (e de repente até antecipar) os rumos assombrosos tomados para esta contundente realização.

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