quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Coringa

Tirado de sua área mais assídua de atividade, o humor, segundo o que ele mesmo chamou de ‘patrulha do politicamente correto’, o diretor Todd Phillips (de “Se Beber, Não Case” e "Dias Incríveis") resolveu deixar o gênero de comédia com um filme que é diversas coisas: Uma alegoria imbuída de sarcasmo das orientações do movimento de esquerda, e paradoxalmente um símbolo improvável para as novas gerações que a defendem; uma homenagem ao cinema suburbano, cru e violento de Martin Scorsese (saltando aos olhos, com facilidade, as similaridades com “O Rei da Comédia” e “Taxi Driver”) e. acima de tudo isso, uma adaptação de histórias em quadrinhos.
Embora, também nesse quesito, “Coringa” represente uma desconstrução: Saturada pela falha de tentar conceber um universo compartilhado que trouxesse à vida os personagens da DC Comics no cinema (a exemplo do que a Marvel Studios fez com retumbante sucesso), a Warner viu seu “Batman Vs Superman” e “Liga da Justiça” converterem-se em constrangedores fracassos –até mesmo o Coringa deu as caras no mal-fadado “Esquadrão Suicida” interpretado por Jared Leto.
A saída, aparentemente, foi desencanar de repetir os passos da Marvel e investir em projetos que, se não estavam interligados, ao menos, poderiam resultar individualmente competentes.
Nesse sentido, as coisas começaram a dar mais certo para “Mulher Maravilha”, “Aquaman” e “Shazam!”.
Deles, todavia, “Coringa” foi um projeto mais radical.
Não apenas era trazido ao centro de um longa-metragem um notório antagonista de um herói que era o protagonista de fato, o Batman –e esse conceito aproxima este filme assim da premissa de “Venom” –como a incorporação de tal personagem era desafiadora; muitos bons atores tentaram, como Jack Nicholson que fez bonito no “Batman”, de Tim Burton”, ou mesmo o infeliz Jared Leto, cuja atuação como Coringa lhe acarretou uma avalanche de críticas negativas. Mas, o feito a ser superado era mesmo o de Heath Ledger que em “O Cavaleiro das Trevas” entregou a mais perfeita, empolgante e assombrosa interpretação de Coringa do cinema –e ganhou um Oscar póstumo de Melhor Ator Coadjuvante por isso!
Para dar a cara à tapa nessa empreitada foi chamado o sempre competente Joaquin Phoenix que se desvencilha muito bem da comparação com Ledger e outros atores ao concentrar sua astuciosa interpretação naquilo que o filme de Todd Phillips tem de mais particular: Uma assim esboçada trama de origem, onde as características marcantes do personagem vão sendo incorporadas e adquiridas pouco a pouco, a medida que o roteiro concebe o surgimento do vilão a partir de realismo e drama humano –nada do tonel químico ou de qualquer referência aos quadrinhos, como “Batman-A Piada Mortal”.
Assim, conhecemos o desamparo de Arthur Fleck (Phoenix), morador da decadente cidade de Gothan City em plenos anos 1980, cuja vida é um abismo de angústia que só faz piorar: Ele trabalha como palhaço de rua enquanto nutre o sonho de prosperar como apresentador de stand-up. Ao mesmo tempo, Arthur sofre de um distúrbio neurológico que o faz gargalhar descontroladamente diante de uma situação que o deixe extremamente triste, tenso ou zangado.
E tais situações se acumulam: Ele é roubado e espancado por delinquentes, a saúde de sua mãe só piora e, como se não bastasse, um de seus colegas de trabalho conspira contra ele, levando-o a perder o emprego. Até mesmo seu ídolo da TV, Murray Franklin, apresentador de um programa de auditório (Robert De Niro, na mais explícita dentre todas as referências à “O Rei da Comédia”) faz chacota dele em seu programa.
Tudo ameaça desmoronar quando o programa de assistência social que permitia a Arthur uma sessão semanal de psiquiatria e remédios que continham seus distúrbios é cortado: Sozinho em sua neurose crescente, ele termina por ceder a instintos homicidas que o levam a matar três executivos engravatados numa noite em um metrô.
Perseguido pelas autoridades, Arthur vê, nas semanas que se seguem, o seu ato violento ganhar uma repercussão entre os indivíduos mais revoltosos e indignados da população que, a partir da imagem do palhaço assassino, podem começar uma onda de destruição em Gothan.
Ao abrir mão completa e convictamente de um herói como personagem principal, o filme de Todd Phillips evoca obras transgressivas como “Laranja Mecânica” ao dar o protagonismo a um personagem que caminha irreversivelmente rumo ao abismo da loucura, e seu filme foi tão bem construído e tão incomum em sua proposta reflexiva que houve muita gente que acabou defendendo a suposta viabilidade da mensagem “Morte aos ricos” difundida pelo Coringa, sem perceber que disso se trata a crítica e a sátira que o diretor procurar fazer do extremismo esquerdista.
“Coringa” é assim uma obra para cabeças e estômagos fortes, bem longe da normalidade convencional e da superficialidade genérica do que muitos podem esperar em uma adaptação de histórias em quadrinhos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário