sábado, 11 de abril de 2020

O Rei de Nova York

O diretor Abel Ferrara conta que uma das inspirações para um de seus mais famosos filmes partiu de –pasmem! –“O Exterminador do Futuro” (!). De alguma forma, Ferrara foi capturado pelo fascínio por personagens que eram capazes de sair atirando a esmo em um ambiente urbano e social; uma violência que ignorava quaisquer convenções.
Todavia, acabam aí as similaridades –o cinema de Abel Ferrara sempre esteve mais para Martin Scorsese do que para James Cameron.
Assim, na fantasia crua e violenta concebida pelas mentes de Ferrara e de seu roteirista de confiança, Nicholas St. John, o personagem que surge para tumultuar a normalidade não é um andróide vindo do futuro, mas um gangster vindo de um longo período na cadeia: Frank White (o personagem de Christopher Walken) é menos inspirado na ficção científica e mais no mafioso nova-iorquino verídico John Gotti.
Ferrara é categórico em afirmar que “O Rei de Nova York” é calcado em elementos fantasiosos –embora, muitos expectadores considerem seu excesso de violência, sua tensão exasperante e seu aprofundamento em meandros políticos como reflexos de realidade.
No decurso da jornada que aparenta ter planejado para si desde o início, Frank já pisa nas ruas de Nova York com seu plano em progresso.
Ele almeja descartar os chefes de gangues anteriores a ele –os italianos, os latinos e os chineses –para assumir o controle total das ruas e do tráfico de drogas com o auxílio dos negros; entre eles, seu fiel capanga, Jump, vivido por Laurence Fishburne. Para tanto, Ferrara não economiza na violência, mostrada em sua obra, como um mal que contamina a tudo.
Se há um esboço de luta de classes na premissa onde ele enxerga os policiais proletariados (David Caruso e Wesley Snipes, liderados por Victor Argo) contra o emergente grã-fino Frank White cuja riqueza provém do crime, essa analogia logo se desvanece quando os próprios policiais sucumbem ao instinto homicida convertendo-se em vigilantes inconsequentes num dos mais desconcertantes momentos do filme.
Esses personagens, por sinal, demonstram uma indignação tão rasteira perante a impunidade de Frank (sobretudo, David Caruso, bem mais afetado que os outros) que não tarda a irritar o expectador: Eles não conseguem materializar um antagonismo sustentável o bastante para o protagonista.
Curiosamente, porém, esses eventuais lapsos não prejudicam o desempenho primoroso da direção em conduzir um filme sobre a deterioração criminal e moral.
Assim, a construção de cenas de Ferrara, ora caótica, ora minimalista, obedece a uma percepção intuitiva para com a narrativa. As considerações do diretor são tão sólidas que muitas vezes parecem surgirem inconscientemente em suas realizações –Frank White, por exemplo, busca inadvertidamente uma espécie de redenção católica na tentativa de construir um hospital mesmo sem jamais abandonar a violência até a última cena.
Muito comparado ao diretor alemão F.W. Murnau por seu uso dos enquadramentos de câmeras e iluminação, Ferrara explicita esse paradoxo ao mostrar seus personagens assistindo ao próprio “Nosferatu” –e as menções ao conceito de ‘vampiro’ são feitas constantemente pelos personagens e pela narrativa, predominantemente noturna.
É perfeitamente defensável o argumento de que o filme termina literalmente por falta de personagens, tamanho é o volume e a intensidade de mortes ocasionadas pelos atos violentos que se deflagram. Nesse fetiche ensandecido e superficial pela sanguinolência, Ferrara retorna à sua inspiração original, abraçando o cinema comercial em suas facetas mais torpes. Tal e qual, Martin Scorsese, entretanto, Abel Ferrara vislumbra em seu trabalho as causas e efeitos existenciais, inerentes a sua natureza católica, oferecendo vasto material para a reflexão.

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