sexta-feira, 19 de junho de 2020

Violação de Conduta

Tão bons atores eles são que esquecemos o fato de John Travolta e Samuel L. Jackson terem antes dividido a cena no altamente consagrado “Pulp Fiction-Tempo de Violência”, de Quentin Tarantino, inclusive também porque eram personagens completamente diferentes dos que eles vivem aqui, neste suspense particularmente eficiente e atrativamente enigmático do diretor John McTiernam. Ainda que os dois astros quase não dividam a cena juntos.
Samuel L. Jackson vive o Sargento West, um treinador linha-dura numa base norte-americana do Panamá –ambiente peculiar introduzido no prólogo da narrativa ao som irônico do “Bolero de Ravel”.
West parte com seis recrutas armados de munição real para um exercício militar debaixo de uma forte chuva torrencial na tarde do dia 1º de novembro.
No dia 2 de novembro, cerca de dezessete horas depois, algo terrível acontece e a capitã Osborne (Connie Nielsen) é designada para elucidar o caso: Durante o resgate de helicóptero dos soldados, apenas dois deles voltaram vivos –um alvejado a tiros, o outro ainda tendo conseguido matar um terceiro com o qual trocava tiros! –e o Sgt. West foi morto.
Como, ainda ninguém sabe.
O Coronel Styles (Tim Daily, de “O Ano do Cometa”), antes que o caso extremamente complicado escape de suas mãos, requisita a ajuda de um ex-integrante da mesma base –e que teve, também ele, instruções com o severo West –o melhor interrogador que ele já conheceu: O atual agente do DEA, o Departamente Anti-Drogas dos EUA, Tom Hardy (John Travolta).
As circunstâncias são desfavoráveis, a tarefa que ele e Osborne precisam executar é árdua e extraoficial, e as testemunhas sobreviventes, os recrutas Dunbar (Brian Van Holt, de “Falcão Negro em Perigo” e “Livre”) e Kendall (Giovanni Ribisi, de “O Resgate do Soldado Ryan” e “Encontros e Desencontros”), aquele que foi alvejado, não colaboram.
Pior que isso: Quando o talento verdadeiramente prodigioso de Hardy para extrair de seus interrogados a verdade finalmente os leva a falar, seus depoimentos são incompatíveis, revelando versões completamente distintas da mesma ocasião –num lance onde o roteiro de James Vanderbilt aproveita para evocar com modernismos de filme de ação as facetas dúbias da narrativa subjetiva proposta em “Rashomon”, do mestre Akira Kurosawa.
West partiu para a selva com seis recrutas –além de Dunbar e Kendall, haviam Pike (Taye Diggs, de “Chicago”), a única mulher Nunez (Roselyn Sánchez, quase uma duplicata de Sandra Bullock), Castro (Cristián de La Fuente) e Mueller (Dash Mihok, de “O Sono da Morte” e “Além da Linha Vermelha”) –em algum momento, quando o exercício é comprometido pela transformação da tempestade em um furacão, o grupo testemunha uma explosão, provavelmente deflagrada pela granada de um deles. O Sgt. West aparece morto, e enquanto se refugiam numa casamata, os seis, segundo os relatos, lidam de diferentes formas com o corrido: Para Dunbar, o culpado era Pike, o mais maltratado pelo Sgt. West dos recrutas, e o que tinha mais motivos para matá-lo.
Para Kendall, o culpado foi o próprio Dunbar –que em sua versão surge taciturno e implacável.
Paralelo a esses flashbacks, os interrogadores, Hardy e Osborne tentam usar de diferentes estratégias e de certa malandragem (característica que John Travolta sempre soube expressar muito bem em seus personagens) para tentar descobrir a verdade por trás de tudo isso –o que pode acabar esbarrando em atividades ilícitas que vão muito além de uma mera vingança em campo aberto e podem comprometer alguns figurões da base militar.
Já foi dito que o diretor John McTiernam é brilhante quando ele tem todos os elementos a seu favor –um roteiro bem esculpido, um elenco capaz e inspirado, um orçamento condizente com os recursos exigidos pela história –e aqui ele dá uma bela prova desse argumento. O roteiro de Vanderbilt frequentemente abusa de suas guinadas e reviravoltas pontuais, mas o diretor harmoniza a narrativa tornando-a urgente e febril tanto nos aflitivos momentos na selva (onde o trabalho de câmera lembra o mesmo resultado obtido por McTiernam em “O Predador”, só que à noite e sob chuva) quanto nos tensos embates verbais durante os sucessivos interrogatórios.
O filme exige certa boa vontade do expectador no seu desfecho quando se sai com uma reviravolta derradeira tão mirabolante que quase soa implausível, entretanto, tal manobra corresponde à nota de ironia com a qual McTiernam começou e com a qual também quer terminar este seu entusiasmado conto investigativo de múltiplos pontos de vista; e também ela, veja só, vem ao som de “Bolero de Ravel”.

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