quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Sussurros do Coração

Uma série de elementos temáticos que definiriam e ainda definem o Estúdio Ghibli convergem e partem de “Sussurros do Coração”, dirigido por Yoshifumi Kondô e roteirizado pelo grande Hayao Miyazaki: Há por exemplo, um curioso e sintomático esforço em transformar gatos em elementos essenciais às suas narrativas –tal e qual o melhor amigo da protagonista em “OServiço de Entregas da Kiki”; o antológico ônibus-gato de “Meu Amigo Totoro” ou o imenso bichano de “O Mundo dos Pequeninos” –além de tomadas constantes e encantadoras de trens e bondes, o que remete imediatamente ao posterior e aclamado “A Viagem de Chihiro”.
Optando por uma trama intimista de primorosas e bem engendradas repercussões românticas, “Sussurros do Coração” é uma daquelas animações com orientação quase adulta no tratamento profundo de mazelas sentimentais, que fazem a animação japonesa como um todo estar tão à frente, temática e narrativamente, do resto do mundo.
A menina Shizuku atravessa aquela fase da adolescência em que as imaturidades da infância começam a ficar para trás, substituídas por ponderações adultas que trazem melancolia e crises existenciais  à sua vida –não, porém, completamente destituídas de ingenuidade.
Há a novidade dos interesses amorosos pelos garotos que se reflete, sobretudo, na paixão inesperada de sua melhor amiga, Yuko, pelo jovem e distraído Sugimura; que termina confidenciando que gosta, na realidade, de Shizuku!
Essas cirandas de amores juvenis são pontuadas pelas irreprimíveis inclinações artísticas de Shizuku, como a poesia –ela e as amigas ensaiam, envergonhadas, uma versão japonesa para a letra da canção “Take Me Home, Country Roads”, de John Denver, de autoria da própria Shizuku; canção esta, aliás, essencial para a animação –e a literatura –ela vive na biblioteca onde o próprio pai trabalha, pois impôs, a si mesma, a meta de ler vinte livros até o final de sua férias.
É entre os livros que, ironicamente, Shizuku encontra indícios da existência de um ‘príncipe encantado’: Um certo nome, Seiji Amasawa, aparece no cartão bibliotecário de praticamente todos os livros que ela emprestou. É, portanto, alguém com o mesmo gosto literário dela.
Aos poucos, e com a sutileza característica da cultura japonesa, Shizuku vai fantasiando com a possibilidade de encontrar o tal Seiji e, sem dar-se conta, vai seguindo pequenas pistas que podem apontar sua proximidade; ele é filho de um professor; tem a mesma idade dela; estudam na mesma série (!).
Quem é Seiji parece ser uma questão que perturba Shizuku tanto quanto a decisão que ela precisa tomar em relação aos rumos de sua vida –Continuar como aluna do ensino fundamental? Desvencilhar-se da família e da mediocridade suburbana à qual parece condenada? Quais são os meios para isso?
Paralelo à esses dilemas –manifestados com expressividade intimista na narrativa quando muitos diretores bateriam a cabeça para acomodá-los num filme convencional –Shizuku deixa-se acirrar com os sucessivos encontros e desencontros com um rapaz, neto do dono de uma loja de antiguidades na qual a estátua de um gato chamado Barão lhe inspira a começar a escrever seu primeiro livro completo.
A história desse livro, por sinal –apresentada em acréscimos elípticos aqui –é completamente vertida num longa-metragem animado em “O Reino dos Gatos”, animação posterior do Estúdio Ghibli que serve como derivado deste daqui.
O futuro profissional e as iniciações românticas são assim o inesperado combustível para esta animação graciosa, adornada de uma postura salutar em relação a temas tão improváveis para este gênero: Talvez por isso, o afinco e a delicadeza com que seus realizadores se lançam neles sejam assim tão comoventes e encantadores.

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