quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

O Teorema Zero


 Um dos últimos trabalhos a nascer da mente fervilhante e inquieta do diretor Terry Gilliam, “O Teorema Zero” pode ser enxergado como uma tentativa de reedição de sua obra “Brazil-O Filme”, no qual ele também contemplava um protagonista às voltas com as imponderabilidades da vida, da mente e da existência, inserido num futuro fútil, esquisito e alegórico.

Escrito por Pat Rushin, o roteiro tem uma assombrosa identificação com os conceitos de abstração, loucura e escatologia metafísica que Gilliam se permitiu revelar em seus projetos mais audazes e autoriais. Mais até: “O Teorema Zero” é, possivelmente, a obra na qual Gilliam mergulha com mais afinco nas inquietações insolúveis e inacreditáveis que lhe orientavam como artista; em grande medida, isso significa que tentar encontrar um sentido em toda a anarquia que se manifesta na tela pode ser um esforço vão.

Também produtor, o ator Christoph Watz vive o protagonista Qohen Leth; com a cabeça (e as sobrancelhas!) toda raspada, e morador de uma igreja abandonada convertida em apartamento (!), Qohen é o típico personagem alienado, com um pé na loucura e outro na esquizofrenia, que Gilliam tanto aprecia; o maluco que expressa a maluquice do mundo ao seu redor, num ato de rompimento com o sistema ao atrever-se a adquirir um mínimo de lucidez.

Qohen trabalha numa empresa de nome Mancon, controlada pelo aparentemente onisciente Gerente (Matt Damon, em uma ponta de luxo), na qual sua função é, como ele mesmo diz, “processar entidades” (!?).

O que vemos Qohen realmente fazer é trabalhar arduamente na tela de um computador tentando completar uma espécie de quebra-cabeças 3D que é também uma equação matemática –parece ser a solução visual de Gilliam para o tal ‘teorema zero’, uma espécie de enigma para o mistério da vida, do qual o protagonista se incumbe, e cuja tentativa de ressolução ocupa cada hora de seus dias.

Qohen padece de todos os tipos de fobia –como fica patente nas conversas destrambelhadas com sua psiquiatra online (Tilda Swinton) –e não deseja ter de ir até a empresa trabalhar, preferindo fazê-lo recluso dentro de sua casa, o que deixa seu supervisor (David Thewlis, de “Cruzada” e “Harry Potter e O Prisioneiro de Askaban”) de ânimos acirrados. Numa festa na casa desse mesmo supervisor, à qual ele comparece meio que forçadamente, Qohen tem um encontro com a descontraída e sexy Bainsley (a deliciosa Mélanie Thierry, de “A Lenda do Pianista do Mar”) que, sem mais nem menos, passa a frequentar sua casa, na forma de uma fantasia erótica que se torna real.

Qohen ganha também a companhia de Bob (Lucas Hedge, de “Boy Erased”), o jovem filho do gerente tornado estagiário da empresa que, pouco a pouco, se torna seu amigo.

Durante esses percalços –que vão se estendendo ao longo de anos –Qohen aguarda obstinadamente por uma ligação que recebeu numa madrugada, e a qual, por descuido, acabou perdendo a conexão. Essa ligação, ele acredita piamente, trará uma voz feminina e transcendental, que lhe dirá, por fim, o sentido de sua própria vida, fazendo toda a tristeza, desesperança e angústia pelo qual passou ter um significado.

Em meio à essa trama amalucada que simula um certo despertar do personagem principal, o diretor Terry Gilliam dispõe pistas acerca da reflexão que ele quer levantar, entretanto, seja de propósito ou de desleixo, essa reflexão nunca fica clara: Seria uma dissertação sobre o nosso vazio existencial? Um conto sobre o tempo que desperdiçamos com questionamentos que jamais nos preencherão por completo? Ou uma angustiada (ainda que ocasionalmente humorada) observação da eterna ausência de respostas para nossas dúvidas metafísicas?

As referências de Terry Gilliam aos seus trabalhos passados são manifestas –além do já citado “Brazil-O Filme” temos a oposição entre medo e amor de “O Pescador de Ilusões”, a percepção alucinatória que engole protagonista e coadjuvantes em “Medo e Delírio em Las Vegas”, a busca idealizada por uma ilusão em “Os Doze Macacos”, e a devoção a uma rotina sem sentido de “Contraponto” –e em seu ressonante significado junto à filmografia tão incomum desse realizador, elas apontam um compêndio e um testamento de loucuras megalomaníacas, desvarios convertidos em imagens e um tratado visual onde o cinema não conhece e não deve conhecer limites.

A obra de Terry Gilliam é assim, cheia de beleza, inconstância e possibilidades irrestritas, tal e qual a arte em sua forma mais pura.

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