quinta-feira, 14 de abril de 2022

A Hora da Zona Morta


 Interessante como a obra literária de Stephen King gera material que consegue se adequar às mais diferentes personalidades dos realizadores que se encarregam dela: Brian De Palma (“Carrie-A Estranha”), Stanley Kubrick (“O Iluminado”), Rob Reiner (“Conta Comigo” e “Louca Obsessão”). A lista é longa.

A esses nomes junta-se David Cronenberg com este notável “A Hora da Zona Morta”.

Como um tigre enjaulado, à toda hora o estlio de Cronenberg ruge, inquieto com as grades da trama comercial de suspense/terror a aprisionar sua indomada criatividade.

Sente-se isso em cena: A narrativa acompanha as nuances da trama sem jamais evitar a sensação desdenhosa de análise antropológica que seu diretor lhe impõe, vislumbrando a maldade humana –um tópico sempre ressaltado no trabalho de Stephen King –como mais uma deformidade, como tantas que ocupam o centro das reflexões de Cronenberg.

Após um acidente, o protagonista Johnny Smith (Christopher Walken), desperta de um período de anos de coma para o mundo real trazendo consigo um dom inesperado: Com um simples toque, ele é capaz de vislumbrar o futuro da pessoa. Como é inerente às suas premissas, não tarda a Stephen King transformar a dádiva em uma maldição: Johnny é confrontado com um dilema atroz ao tocar a mão de um candidato à congressista norte-americano (Martin Sheen); na sua palpável premonição, o candidato se torna presidente dos EUA e, com a autoridade de tal posto, acaba deflagrando a Terceira Guerra Mundial.

Se para King essa dúvida, brotada das vastas alternativas do fantástico, já é o cerne de todo o enredo, Cronenberg lhe atribui algo mais –o questionamento, muito humano e aterrador, ao redor da validade de tal profecia. Johnny é, afinal, um vidente, ou uma aberração, como tantas, é bom lembrar, que povoam a filmografia de Cronenberg desde que ele aventurou-se pelo cinema?

Como todo bom autor mais interessado na provocação do que na mera ação, Cronenberg reluta a fornecer tal resposta –na realidade, ele não a entrega de fato. Há, na convenção de um desfecho ameno e fiel ao livro, um elemento que reconforta plateias mais comerciais com o indício de uma resolução apetecível, mas Cronenberg, atrevido que só ele, nunca deixa que seja mais que isso mesmo, um indício.

Na certeza perene de sua visão amarga e transfiguradora das pulsões humanas, o diretor não dá a esta desigual transposição de Stephen King um viés que a reduza em uma trama de simplismos factuais e sobrenaturais. Em seu conceito pleno de camadas e complexidade, Cronenberg oferece uma reflexão bem mais ampla e profunda que envolve pontos de vista, psicopatia, tragédias injustificáveis e dúvidas insolúveis.

Nos anos 1980, distraídos com sua inércia inocente, os expectadores elegeram “A Hora da Zona Morta” como uma ótima adaptação de King e só, sem atentar para as nuances pertinentes que seu diretor muito sutilmente lhe soube incutir. Resta, portanto, aos expectadores da atualidade, a chance preciosa de rever esta obra e dela extrair os significados que antes possam ter escapado.

Eles permanecem todos lá –como em quase todas as obras de Cronenberg –a transtornar os mais atentos com uma visão fatalista, algo desesperançada, da condição humana e sua mal-disfarçada incapacidade para discernir (ou mesmo determinar o que é) o bem e o mal.

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