Interessante como a obra literária de Stephen King gera material que consegue se adequar às mais diferentes personalidades dos realizadores que se encarregam dela: Brian De Palma (“Carrie-A Estranha”), Stanley Kubrick (“O Iluminado”), Rob Reiner (“Conta Comigo” e “Louca Obsessão”). A lista é longa.
A esses nomes junta-se David Cronenberg com
este notável “A Hora da Zona Morta”.
Como um tigre enjaulado, à toda hora o estlio
de Cronenberg ruge, inquieto com as grades da trama comercial de suspense/terror
a aprisionar sua indomada criatividade.
Sente-se isso em cena: A narrativa acompanha as
nuances da trama sem jamais evitar a sensação desdenhosa de análise
antropológica que seu diretor lhe impõe, vislumbrando a maldade humana –um
tópico sempre ressaltado no trabalho de Stephen King –como mais uma
deformidade, como tantas que ocupam o centro das reflexões de Cronenberg.
Após um acidente, o protagonista Johnny Smith
(Christopher Walken), desperta de um período de anos de coma para o mundo real
trazendo consigo um dom inesperado: Com um simples toque, ele é capaz de
vislumbrar o futuro da pessoa. Como é inerente às suas premissas, não tarda a
Stephen King transformar a dádiva em uma maldição: Johnny é confrontado com um
dilema atroz ao tocar a mão de um candidato à congressista norte-americano
(Martin Sheen); na sua palpável premonição, o candidato se torna presidente dos
EUA e, com a autoridade de tal posto, acaba deflagrando a Terceira Guerra
Mundial.
Se para King essa dúvida, brotada das vastas
alternativas do fantástico, já é o cerne de todo o enredo, Cronenberg lhe
atribui algo mais –o questionamento, muito humano e aterrador, ao redor da
validade de tal profecia. Johnny é, afinal, um vidente, ou uma aberração, como
tantas, é bom lembrar, que povoam a filmografia de Cronenberg desde que ele
aventurou-se pelo cinema?
Como todo bom autor mais interessado na
provocação do que na mera ação, Cronenberg reluta a fornecer tal resposta –na realidade,
ele não a entrega de fato. Há, na convenção de um desfecho ameno e fiel ao
livro, um elemento que reconforta plateias mais comerciais com o indício de uma
resolução apetecível, mas Cronenberg, atrevido que só ele, nunca deixa que seja
mais que isso mesmo, um indício.
Na certeza perene de sua visão amarga e
transfiguradora das pulsões humanas, o diretor não dá a esta desigual
transposição de Stephen King um viés que a reduza em uma trama de simplismos
factuais e sobrenaturais. Em seu conceito pleno de camadas e complexidade,
Cronenberg oferece uma reflexão bem mais ampla e profunda que envolve pontos de
vista, psicopatia, tragédias injustificáveis e dúvidas insolúveis.
Nos anos 1980, distraídos com sua inércia
inocente, os expectadores elegeram “A Hora da Zona Morta” como uma ótima
adaptação de King e só, sem atentar para as nuances pertinentes que seu diretor
muito sutilmente lhe soube incutir. Resta, portanto, aos expectadores da
atualidade, a chance preciosa de rever esta obra e dela extrair os significados
que antes possam ter escapado.
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