domingo, 18 de setembro de 2022

Um Método Perigoso


 Em algum ponto dos anos 2000-2010, quando firmou uma bela parceria com o ator Viggo Mortensen, o diretor David Cronenberg iniciou uma bela fase onde seus filmes –análises antropológicas e implacáveis do instinto sobre a índole humana –adquiriram uma interessante aura de sutileza, elegância e classe. Predicados que a crítica não enxergou (ou não quis enxergar) em obras anteriores como “Gêmeos-Mórbida Semelhança” e “Mistérios e Paixões”.

Certamente, era uma proposta e tanto a deste “Um Método Perigoso” onde Cronenberg, com suas observações apuradas e de irrestrito pudor artístico, focaria suas lentes na relação entre Carl Jung e Sigmund Freud, o pai da psicanálise.

Foi uma surpresa para muitos –e talvez, uma frustração para seus apreciadores mais incondicionais –que o relato desse encontro tivesse ganhado um viés clássico, focado nas atuações e no diálogo, abrindo mão assim das mutações físicas e de irreprimível apelo visual que tanto fizeram a fama do diretor. Em “Um Método Perigoso”, Cronenberg está, mais do que nunca, interessado nas peculiaridades da mente; lá onde começam, afinal, todas as celeumas que a ele sempre importaram.

De uma maestria inconteste, Michael Fassbender é Carl Jung, jovem psiquiatra que inicia, na Suíça, o tratamento da jovem e perturbada Sabina Spielrein (Keira Knightley, dando vazão irreprimível a todos os histrionismos de Cronenberg) sob a atenta e irrefutável orientação de seu mentor Sigmund Freud (Viggo Mortensen, contido e magnífico), cuja constatação é de que todas as celeumas psíquicas humanas têm uma origem na relação embrionária do indivíduo com o sexo. Embora se sinta inclinado pela admiração à aceitar as instruções de Freud, Jung pensa diferente: Para ele, os sonhos têm muito mais a dizer em relação ao subconsciente da pessoa do que sua relação com a própria libido.

A medida que os anos passam, não apenas o relacionamento entre Carl Jung e Sabina Spielrein se modifica (ele, a despeito de ser casado, a transforma em sua amante), como também a relação entre Jung e Freud vai se submetendo a um rompimento gradual e irreversível a medida que as convicções de cada um e a forma distinta com que enxergam a psicanálise vai os afastando.

A proposta embutida nesta obra de Cronenberg é um tanto quanto inédita em toda a sua filmografia: Vislumbrar ou, em última instância, perceber, tatear, pela primeira vez, as profundezas insondáveis, deixando de lado o que se vê na superfície. Com efeito, as imagens, desta vez, pouco dizem a respeito da obra que o diretor deseja moldar. Em alguns momentos, nem mesmo aquilo que é dito e discutido. É nas compreensões implícitas –e na habilidade das atuações precisas e minimalistas assim orquestradas –que está o verdadeiro cerne ao qual Cronenberg quer chegar. Na contradição humana e incontornável de Jung e sua postura acadêmica –tentando confrontar as observações estabelecidas de seu mentor Freud com suas próprias e válidas concepções psicanalíticas –ao ceder, justamente ao sexo (o X da questão na opinião de Freud) que descobre fora do casamento com sua transtornada Sabina. Ao mesmo tempo, Cronenberg transforma Freud num personagem a um só tempo supino, presunçoso, egocêntrico e dissimulado, sem no entanto, negar a possibilidade dele ter lá suas razões. O único ponto fraco, e que ameaça comprometer terrivelmente a harmonia deste ambicioso projeto, é a inglesa Keira Knightley que, ao abraçar uma personagem radicalmente distante das mocinhas hollywoodianas que vinha fazendo, não traduz, numa atuação à altura, as mazelas impronunciáveis nem os recônditos poderosamente obscuros de sua personagem.

Dessa forma, o desenlace carnal com Jung surge mais como uma performance extraconjugal repleta de caras e bocas, e menos como o arremate de angústias primitivas que deveria ser. Tivesse Cronenberg contado com uma atriz capaz de verdadeiramente compreender as inquietações emocionais da personagem (como Naomi Watts, Jennifer JasonLeight ou Geneviéve Bujold) o resultado teria sido outro –da forma como está, é um trabalho que aponta um refinamento com o qual Cronenberg não aparenta estar de todo confortável.

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