domingo, 15 de outubro de 2023

De Guy Ritchie O Pacto


 Desde sua estréia, em “Jogos, Trapaças e DoisCanos Fumegantes”, o diretor Guy Ritchie se mostrou habilidoso e versátil no manejo dos mas diversos gêneros, estilos e narrativas. Embora em sua filmografia tenha sempre predominado uma característica brutal, inclinada à truculência de diferentes microcosmos masculinos, ele realizou de tudo um pouco –até mesmo um inusitado romance (“Por Um Destino Insólito”, com sua então esposa Madonna, talvez seu único filme ruim) e um live action da Disney (o válido e fulgurante “Aladdin”) ele tem em seu currículo! Em comum, suas obras apresentam, apesar dos elementos vastos que as diferenciam, uma proximidade inapelável para com seus protagonistas, o que faz de cada um de seus filmes um projeto quase pessoal: É essa proximidade que converte suas narrativas numa experiência sensorial, onde sentimos os mesmos exasperos, e somos levados, pelo inconformismo de sua direção, ao centro dos enredos deflagrados.

Em “O Pacto” –ou “The Covenant” –o centro desse enredo é o Sargento John Kinley, interpretado com a excelência de sempre por Jake Gyllenhaal. Soldado do exército norte-americano, Kinley esteve, como tantos outros, na linha de frente, na guerra contra o terror promovida pelos EUA no Oriente Médio, após os ataques de 11 de Setembro de 2001, e que se estendeu pelas duas décadas seguintes. Em 2018, quando a trama tem início, Kinley é um sargento-mestre numa equipe de soldados incumbidos de incursões por vilarejos e cidades do Afeganistão em busca de armas contrabandeadas pelo Talibã.

Ao perder seu último intérprete –tradutores colhidos pelo exército entre a própria população muçulmana que arriscavam suas vidas e de suas famílias, em troca de vistos de imigração pelo auxílio às tropas –o Sgt. Kinley recebe em sua equipe o taciturno Ahmed (o magnífico Dar Salim, de “Êxodo-Deuses e Reis”), competente, esperto e eficiente, ainda que ligeiramente indisposto com autoridades. A confiança custa a nascer entre Ahmed e o Sgt. Kinley; até porque não eram raros os homens em serviço que denunciavam as tropas americanas ao Talibã em troca de algum suborno.

Ao obter, por meios um tanto ambíguos, a localização de um esconderijo de armas dos terroristas, a equipe de Kinley parece dar um passo maior que as pernas e cai numa cilada difícil de se desvencilhar: Todos são mortos, exceto por Ahmed e Kinley. Os dois têm então que empreender um regresso à base americana, à mais de cem quilômetros de distância (!), sem o uso de automóveis –as estradas se encontram patrulhadas pelos homens do Talibã que toma a captura dos dois como uma questão de honra –e, de um ponto em diante, com Ahmed precisando carregar o Sgt. Kinley, alvejado de tiros pelos inimigos.

Embora esse trecho tenso e angustiante do filme faça lembrar e muito “O Grande Herói”, de Peter Berg (e ambos os filmes contem inclusive com um mesmo nome no elenco, o jovem Alexander Ludwig, de “Jogos Vorazes”), o diretor Ritchie até que não se detêm tanto nele: Ahmed e Kinley se salvam, com o americano voltando para casa alguns meses depois. Entretanto, Kinley agora compreende ter uma dívida de vida para com Ahmed que, como muitos outros intérpretes a servir no exército dos EUA naqueles anos, foi deixado desamparado e sob risco de morte no Afeganistão.

A marcha engrenada por Ritchie, nesse sufocante, aflitivo e vertiginoso terço final, lembra vagamente o clássico “Os Gritos do Silêncio”; o norte-americano, triturado por crises de consciência do alto de sua confortável e segura posição de cidadão de primeiro mundo, quer honrar a consideração que o estrangeiro lhe dedicou e salvá-lo dos revezes perigosos de sua própria terra.

Concebido com uma exuberância técnica que chega quase a ombrear o primoroso “Falcão Negro Em Perigo”, de Ridley Scott, este trabalho de Guy Ritchie serve para expor em boa luz –até muito mais do que seus descompromissados e usuais projetos comerciais –as suas capacidades incontestes como diretor. Ele realmente conduz com propriedade os desdobramentos ora folhetinescos, ora pirotécnicos deste drama de guerra, e sua duração considerável (que se prolonga uns vinte ou trinta minutos para além do necessário) e seu exagero pontual nos quesitos sangue e violência só não levam a narrativa a sofrer pela pressão de seu excesso justamente por conta dessa notável e criativa condução.

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