Que diretor em estado de graça foi esse Alfred
Hitchcock, senhoras e senhores! Logo após uma sucessão de trabalhos onde fez o
grandioso “Intriga Internacional” e subversivo e ousado “Psicose”, eis que ele
entrega “Os Pássaros”, um marco técnico e temático do suspense recheado de
incríveis singularidades.
Não há trilha sonora em “Os Pássaros” –o comentário
de cenas perpetrado pelo compositor Bernard Hermann se dá por um arranjo
minucioso do ruído dos pássaros quase sempre em fúria que, sintetizados numa
vibração alarmante e repetidos sistematicamente na ocasião certa, vão
produzindo um efeito asfixiante no expectador.
Isso acarreta ao filme, desde seu princípio, um
clima ambíguo que, num paradoxo, ao mesmo tempo neutraliza a ênfase dos momentos
tensos e os potencializa ao longo de todo o filme: Se nada é preocupante, então
tudo é preocupante.
Essa não é deveras a única audácia de
Hitchcock, num filme cujo roteiro desafia os princípios básicos de narrativa do
gênero: A premissa de “Os Pássaros” se recusa trabalhar a construção dos
catalizadores de toda a crise que ele irá retratar, não oferece explicações (ao
menos, não definitivas) para os desenlaces que ocupam sua importância central
(o ataque dos pássaros), e portanto, não aborda nada referente ao seu próprio
tema durante todo seu primeiro terço –e, contra todas as previsões, essas
escolhas em princípio contra-producentes, não resultam num prejuízo da
narrativa.
A começar sua trama, a mocinha socialite de São
Francisco, Melanie Daniels (Tippi Hedren) está, olhe só, numa loja de pássaros.
Ali inicia-se um flerte entre ela e o elegante transeunte Mitch Brenner (Rod
Taylor); detalhes absolutamente irrelevantes, mas que estranhamente ocupam todo
o centro do plot no lugar dos usuais ganchos narrativos que o roteiro adotaria.
Interessada em chamar a atenção de Mitch,
Melanie vai até a casa da família dele, na cidadezinha litorânea de Bodega Bay
e dá um jeito de ser convidada para a festa de aniversário da irmãzinha dele,
Cathy (Veronica Cartwright, de “Os Eleitos” e “As Bruxas de Eastwick” ainda bem
novinha), a despeito da ligeira insatisfação da mãe, Lydia (Jessica Tandy).
Esse início traz uma curiosa análise das
vicissitudes dos relacionamentos modernos, na qual, alguns críticos enxergam os
propósitos para os quais o ataque de pássaros será uma espécie de alegoria.
Tudo o que Hitchcock faz, na primeira meia hora
de filme é justapor os indícios do que virá à condução aparentemente
corriqueira de sua trama então descentralizada (um prenúncio de romance entre
Melanie e Mitch, a possível rivalidade dela com a professora Annie; a reação
inicialmente hostil de Lydia à pretendente do filho): Galinhas que se recusam a
comer a ração servida pelos donos; revoadas gigantescas ocupando o céu, qual um
exército se agrupando para a batalha; fileiras de pássaros abarrotando
ameaçadoramente os fios de postes de luz; incidentes súbitos como a gaivota que
ataca a cabeça de Melanie em um barco e outra que se choca propositadamente
contra a porta de uma casa.
Durante a dita festa de aniversário, o primeiro
ataque mais expressivo dos pássaros acontece –crianças são alvejadas por
gaivotas ensandecidas –logo seguido de outro –a casa de Mitch é repentinamente
invadida por um turbilhão de pequenos pássaros que entram por sua chaminé (!).
E o filme de Hitchcock sobre a fúria da
natureza voltada contra o homem vai então num crescendo que confronta os
personagens com o improvável tornado provável: Lydia encontra um vizinho morto
à bicadas por gaivotas, num dos momentos mais tétricos do filme, e Melanie, ao
tentar resgatar Cathy da escola escapa, junto das crianças, de um ataque brutal
de um bando de corvos, apenas para testemunhar, logo depois, de dentro de um
restaurante na cidadezinha, a destruição provocada pela fúria dos animais
voadores.
Amparando sua obra num trabalho técnico voltado
ao minimalismo dos efeitos especiais como nunca antes em sua carreira,
Hitchcock molda um filme pontuado de ineditismos enquanto realizador: Não à
toa, ele declarou à imprensa que este tratava-se de seu trabalho menos autoral
e característico.
O sufocante terço final mostra Melanie, junto
de Mitch e sua família, a tentar suportar as ondas contínuas de ataque dos
pássaros dentro da segurança cada vez mais frágil de sua casa, convertida num
refúgio apocalíptico. Os pássaros, pois, se cansaram dos mal tratos do ser
humano e contra ele se revoltaram –é a teoria mais imediatamente viável
suscitada no filme.
Entretanto, outras também emergem aqui e ali:
Um bêbado na cena do restaurante cita um versículo da Bíblia (seria então, um
castigo divino?); outro marujo menciona uma onda de ar frio que teria
direcionada os animais para aquela cidade (fenômeno real ocorrido em 1961 que
teria inspirado Hitchcock neste filme de 1963).
Contudo, a possibilidade que realmente encanta
os críticos tem explicação psicanalítica: “Os Pássaros” seria, como muitos
outros trabalhos de Hitchcock (“Um Corpo Que Cai”, “Janela Indiscreta”,
“Marnie”), um tratado metafórico sobre dinâmicas amorosas e familiares. Nele,
Melanie é o agente externo propagador de inseguranças e alterações (em Mitch,
cujo interesse desperta, em Lydia, que inicialmente quer rejeitá-la), não à
toa, uma mulher no restaurante aponta o fato dos pássaros terem iniciado seus
ataques exatamente quando ela chegou à Bodega Bay.
Nessa visão de Hitchcock, o núcleo familiar
reagiria então na tentativa de rejeitar ou acomodar esse novo membro. E na
aflitiva cena final, quando quase é morta, Melanie é também destituída de suas
vestes urbanas inabaláveis pelos pássaros (que finalmente rasgam o enervante
modelito verde que trajou o filme todo), eis que, dos ferimentos selvagens que
sofreu, a mocinha se transfigura (renasce) então não mais como uma dondoca
frívola, mas pronta para ser incluída nessa família: Ela agora pode ser uma
filha para Lydia (e pode encontrar nela a mãe que não teve) e ser uma boa
esposa para Mitch.
Os pássaros, no final das contas, tiveram papel
intermediário e canalizador nesse processo –e prova de que não há rancor é que
os perequitos de Cathy são levados junto com eles no carro em direção à cidade.
O próprio Hitchcock se
irritava com essas leituras demasiadamente simbólicas para suas obras, mas, não
há dúvidas de que, em “Os Pássaros”, ele deixou ampla margem para infindáveis
interpretações.
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