Desde sua gradativa consolidação autoral pós-Retomada, o cinema brasileiro parece encontrar uma definição específica em cada grande obra que emerge. Exemplificando, isso ocorreu com “Cidade de Deus”, com “Tropa de Elite”, com “Bingo-O Rei das Manhãs” e com muitos outros. Cada qual estabelece um conceito vigoroso e vital de como a linguagem cinematográfica pode funcionar, com talento, exuberância e relevância, dentro da cultura e do contexto brasileiro.
À esses títulos tão honoráveis, soma-se o brilhante
“Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho (diretor de “O Som Ao Redor” e “Aquarius”)
e Juliano Dornelles.
Audaciosa obra a tentar vislumbrar a
possibilidade de um futuro próximo em meio às peculiares características do
norte do Brasil, o filme se passa na cidadezinha de Bacurau, em algum lugar do
oeste pernambucano. Ainda que habitada por aquela fauna brasileira que, vez ou
outra, encontra brilhante retrato nas realizações do nosso cinema, a localidade
diminuta e simples guarda elementos que apontam para um futurismo que, em
certos aspectos razoáveis, ainda não chegou lá –uma tecnologia proeminente
parece interferir ocasionalmente naquela rotina milenar, com pequenas inserções
de modernidade em meio à vida agreste; seria então “Bacurau” uma variação
temática e regional do que autores americanos reconhecem por cyberpunk, a
ficção científica e o avanço futurista retratados num cenário de baixa
tecnologia.
Apesar desse elemento prontamente curioso, é na
caracterização tipicamente brasileira dos moradores de Bacurau que a narrativa
realmente se concentra –o que faz o filme de Mendonça Filho e Dornelles passar
a enganosa e deliberada impressão de que é esse tipo de obra nacional que ele
será.
“Bacurau” promove a ilustração de um relevo
gradual de sua comunidade só até o expectador se sentir à vontade com essa
normalidade e, sem saber, adquirir certa empatia pelos personagens. Eles são
numerosos, mas pontuados com precisão: A ex-professora que volta de viagem com
o carro-pipa (Bárbara Colen) para o enterro da mãe; seu pai, professor local
(Wilson Rabelo) cuja revelação, às crianças, que Bacurau é tão insignificante
que não aparece no mapa o deixa perplexo; o curandeiro local (Carlos Francisco),
habituado a andar nu por aí (!); Acácio –ou Pacote –(Thomas Aquino) um ex-pistoleiro
procurando redenção ao auxiliar seu povo; a Dr. Domingas (Sonia Braga,
maravilhosa como sempre), mulher responsável, solícita e austera quando sóbria,
passional e bipolar quando bêbada (!); Lunga (Silvero Pereira, de “Serra Pelada”), bandidão foragido da região que faz as vezes de Robin Hood local;
Tony Júnior (Thardelly Lima), o tentacular, sórdido e dissimulado político da
região, de maldade tão notória que quando aparece para angariar votos, toda
cidade se esconde (!); e diversos outros.
Como todo grande filme, é por meios
completamente inesperados ao expectador que “Bacurau” começa a revelar-se
genial: Primeiro, com a suspeita aparição de um drone nas redondezas; depois,
com um misterioso atentado contra o caminhão-pipa. Na sequência, uma fazenda de
cavalos nas proximidades vira palco de uma chacina, e dois motociclistas muito
suspeitos (Antonio Saboia e Karine Teles, ela de “Que Horas Ela Volta?”)
aparecem no lugar, terminando por alvejar dois cidadãos.
Logo descobrimos a razão: Ali perto, um grupo
de norte-americanos liderados pelo pernicioso Michael (Udo Kier, de “Medeia” e
“Sangue Para Drácula”) está à espreita. São turistas de primeiro mundo –alguns
com vidas bastante medíocres, o que só potencializa sua violência latente
–dispostos a experimentar um jogo sádico e radical; valerem-se de tecnologia, e
do fato de Bacurau tratar-se de uma pequena comunidade nos confins do mundo,
para matar impunemente toda uma pequena cidade de pessoas latinas: E essa
medonha concepção de discriminação apática fica particularmente registrada na
tensa e desconcertante cena envolvendo os americanos e a dupla de motociclistas
brasileiros, seus comparsas.
É como o enredo de “Turistas” ou de “O Albergue” empregado num viés invertido –e francamente bem mais plausível e
próximo da absurda realidade. Perspicazes, os diretores Mendonça Filho e
Dornelles, apesar da premissa instigante, nunca cedem à tentação de transformar
“Bacurau” num pastiche de narrativa de ação e aventura norte-americana: Mesmo
após a guinada que o transforma no filmaço que ele é, o ritmo de “Bacurau”
jamais perde sua personalidade tão inerente ao cinema nacional e à cultura
brasileira. As tensões se afunilam, a medida que as cartas são colocadas na
mesa, os personagens são estabelecidos e alinhados e tudo caminha para os
espetaculares trinta minutos finais, onde “Bacurau” emula, de forma apoteótica,
elementos desta vez do faroeste.
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