domingo, 9 de abril de 2023

John Wick 4 - Baba Yaga


 É bem provável que nenhum diretor de ação do cinema moderno ostente um conhecimento tão intrínseco das engrenagens cinematográficas quanto Chad Stahleski. Na epopéia em quatro filmes que compõem a “Saga John Wick”, ele provou-se um raro entendedor daquilo que conferem brilho, textura e valor à linguagem narrativa traduzida em imagens que se movem. Diferente da grande maioria dos diretores de ação –até mesmo daqueles admiráveis, como John Woo –para Stahelski a ação não é mera cacofonia e caos visual. Ele a enxerga na essência da imagem em movimento que define o próprio cinema e, para tanto, são imprescindíveis as proposições de cinema mudo, as referências temáticas e sensoriais do faroeste, o tratamento estilizado dos entraves físicos, a amplitude do enquadramento a emoldurar a ação num quadro de cores vivas, elementos que se percebem desde o primeiro filme. Stahelski foi particularmente feliz ao descobrir que nenhum outro ator senão Keanu Reeves seria capaz de compreender e refinar a linguagem corporal de movimentos precisos e expressivos que definem o protagonista –e olha que muitos intérpretes antes dele se apresentaram para a tarefa.

Em seu quarto longa-metragem, “John Wick” surge consagrado como uma das grandes realizações no campo da ação cinematográfica de todos os tempos, e refuta cada um dos palpites negativos de seus detratores ao afirmarem que, por vezes,a proposta embutida em sua fórmula se torna propícia à repetição. A trama de “Baba Yaga” é simples, entretanto, sua elaboração é tão brilhante, tão cheia de requinte e primor que mesmo diante da nada modesta duração de duas horas e quarenta e nove minutos (o que prolonga suas sequências para muito além do que os anteriores já permitiam) se revela um espetáculo extasiante.

Na última vez que vimos John Wick, em “Parabellum”, ele foi arremessado pela traição de Winston (Ian McShane) num caminho de conflitos ainda mais impossíveis, destituído de aliados –na verdade, ele ainda pode contar, vez ou outra, com o auxílio do Rei de Bowery (Laurence Fishburne, sempre soberbo), no entanto, as complicações de Wick se afunilaram: A Alta Cúpula (os mandatários principais da tentacular organização de assassinos que se estende pelo mundo todo e dentro da qual Wick é uma lenda), em desespero, relegou poder absoluto ao instável e psicótico Marquês de Gramont (Bill Skasgaard, de “It-A Coisa”), depois que Wick (na cena que já abre o filme) dá provas de que agora vai atrás dos membros anciões para matar um a um. O Marquês trata assim de punir Winston tirando-lhe o status de gerente e o controle do Hotel Continental –na verdade, implodindo todo o hotel! –e deixando claro que todo aquele que acobertar Wick pagará o mesmo preço. Com efeito, é o que se sucede no Japão, no Hotel Continental de Osaka, gerenciado por Shimazu (Hiroyuki Sanada), grande amigo de John Wick: O local é invadido por atiradores da Alta Cúpula na primeira das inúmeras sequências monumentais do filme.

A partir daí, John Wick elabora um plano: A fim de resolver em definitivo sua situação com a Alta Cúpula, ele deverá propor um duelo de honra contra o próprio Marquês de Gramont. Contudo, para tanto, ele precisa do respaldo de uma família integrante da Cúpula, família esta que John Wick possui –e se encontra em Berlim –porém, há tempos eles já o deserdaram. A única maneira de restaurar os laços com a atual líder do clã, sua ressentida irmã adotiva Katia (Natalia Tena, de “Harry Potter e A Ordem da Fênix”) é aceitar uma incumbência que somente John Wick seria capaz de cumprir: Eliminar Killa (Scott Adkins), o chefe da jurisdição alemã da Cúpula, responsável por matar seu pai. Nessa trajetória de embates e destruição –que, a rigor, se cumpre nos mesmos moldes dos filmes anteriores –John Wick se cruza com pelo menos dois personagens que introduzem uma interessantíssima dinâmica de ambiguidade em seu conflito: O implacável Caine (o maravilhoso Donnie Yen, de novo interpretando um personagem cego sensacional depois de “Rogue One”) cuja genuína amizade com John Wick se equilibra, na mesma balança moral, com o zelo incondicional pela filha, e o misterioso Mr. Nobody (Shamier Anderson, de “Cidade de Mentiras” e da série “Winonna Earp”) mercenário admirador de Wick que apenas aguarda, paciente, o preço pela sua cabeça atingir as cifras que deseja –e que compartilha com ele o mesmo apreço por cães!

Com base nessa trama urgida com precisão –na qual a originalidade está na execução, na objetividade com que atende as demandas de seu público e no esmero singular com que molda as características de sua fascinante mitologia –Chad Stahleski transforma “Baba Yaga” num tratado assombroso e ambicioso da construção narrativa da ação no cinema. Os elementos visuais que determinam uma obra cinematográfica –fotografia, montagem, manejo dos atores dentro do plano –são empregados, todos em uníssono, na composição de sequências espantosas de ação, seja o tiroteio numa sala envidraçada de exposição japonesa, ou a perseguição numa rave alemã com cascatas artificiais decorando o recinto (antecedida por uma brilhantemente tensa disputa de cartas), seja a luta inacreditável situada em pleno Arco do Triunfo, na França, em meio ao tráfego insano de automóveis em alta velocidade, ou a impressionante cena na escadaria de duzentos e vinte e dois degraus que leva à Basílica de Sacré-Coeur, o grande clímax de “Baba Yaga”. Tudo, na obra de Stahelski está a serviço do aprimoramento visual do que se entende por ação, e na excelência técnica de suas coreografias de luta, na beleza ímpar de sua direção de fotografia e no arrojo exemplar de seu astro (bem como a desenvoltura física espantosa de seus dublês) ele faz de “Baba Yaga” um verdadeiro desafio a ser superado por qualquer longa-metragem de ação por vir.

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