Durante os anos 1970, houve uma série de movimentos cinematográficos que evocaram em grande medida um sentimento na sociedade da época, onde uma descrença, um cinismo, uma recusa à credulidade e à ingenuidade apontava para a percepção de uma realidade dura, bruta e cruel. Não se tratava somente da Nova Hollywood, com suas obras autorais e desafiadoras (embora elas sejam, sim, poderosamente exemplares), mas de toda uma miríade de produções da época –questionava-se as noções de sociedade e de relacionamentos por meio de filmes sexualmente audaciosos (“O Último Tango Em Paris” e “O Império dos Sentidos”); expiava-se traumas históricos e políticos contundentes (“O Franco-Atirador”), a desilusão era ilustrada em uma série de imagens poderosas (“Cinzas No Paraíso”, “Meu Ódio Será A Sua Herança” e “Apocalypse Now”).
Essa vertente prosseguiu nos anos 1980,
encontrando vez ou outra, uma obra que se posicionava contra essa tendência
subconsciente –foi, portanto, nessa década que as coisas começaram a mudar.
Surgiram realizadores, como Steven Spielberg e George Lucas, que tomaram para
si a responsabilidade de fazer representativo um novo cinema, um cinema que
falasse às aspirações insondáveis do ser humano, que desse asas à sua mais
tresloucada imaginação. Muitos foram os filmes que deram corpo, nos anos 1980,
a esse propósito, mas, em 1984, surgiu um filme que, à sua maneira,
representava, qualificava e arrematava toda essa discussão na alegoria de seu
enredo. Esse filme era “A História Sem Fim”.
Não faltaram filmes de inapelável pessimismo no
ano de 1984 –nesse período foram lançadas as lúgubres ficções “O Exterminador do Futuro” e “1984 de Orwell”; o árido e dramático “Paris, Texas”; o irônico,
inquietante e arrebatador “Amadeus”; o amargo e reflexivo “Era Uma Vez Na América” e tantos outros. E foi nesse período também que, num reflexo da
desilusão recorrente da década anterior, o Movimento Punk ganhou mais expressão
na música e nas artes, trazendo uma juventude que, farta e desesperada de tanta
subversão, optava por uma implosão de valores por meio da anarquia.
De uma certa maneira, um pouco de tudo isso
pode ser trazido para a reflexão proposta em “A História Sem Fim” que, na
época, muitos poucos compreenderam, preferindo enxergá-lo como aquilo que em
princípio ele parecia, um simples filme infantil. Quando a trama começa, somos
apresentados ao dia-a-dia melancólico do menino Bastian (o pequeno Barret
Oliver) cuja mãe morreu (!) e cujo pai atarefado, pragmático e incapaz de lidar
com os sentimentos de luto do filho, o deixa só na maior parte do tempo.
Bastian sofre bullying na mão de
outros garotos valentões na escola e, diante dessa situação, só lhe resta
buscar refúgio num sotão escolar e nas páginas de um livro que um senhor
bibliotecário lhe emprestou, um livro intitulado “Never Ending Story” –ou A
História Sem Fim.
Bastian mergulha assim na leitura,
descortinando para o público a história dentro da história que haverá de se
revelar no filme: Num mundo chamado ele próprio de Fantasia, um conselho de
criaturas diversas debate um perigo incalculável que se aproxima, denominado
tão somente de O Nada, um mal que simplesmente encerra a existência de tudo
aquilo que alcança. Esse conselho escolhe um herói para partir numa
imponderável jornada rumo a uma improvável chance de salvação, o garoto
indígena Atreyu (Noah Hathaway) que, em princípio, não faz a menor ideia de por
onde começar.
Nessa curiosa jornada –acompanhado de perto
pelo atencioso leitor Bastian –Atreyu vivencia diversas situações diferentes e
que permitem interpretações de significados opostos em adultos ou crianças.
Quando, por exemplo, Atreyu se defronta com o Lobo Gmork, um lacaio do próprio
Nada –e que surge num sinistro diálogo oculto numa penumbra que só possibilita
enxergar seus olhos ameaçadores –a cena remete, às crianças, ao personagem
tipicamente mau de “Os Três Porquinhos” ou “Chapeuzinho Vermelho”, mas os
adultos notarão, no diálogo que se segue, que o Lobo é, em si, uma ilustração
do fascismo –“Assuste-os e você será
capaz de controlá-los!” –há também a sequência em que Atreyu e seu cavalo
Artax atravessam o Pântano da Tristeza, um lugar que identifica os sentimentos
sombrios no indivíduo e por meio deles o leva a afundar em suas águas
lamacentas, numa poderosa alegoria da depressão.
A medida que a trama avança, e elementos de
metalinguagem e quebra da quarta parede, cruciais para o desfecho, começam a
interferir na leitura de Bastian, “A História Sem Fim” permite compreender que
seu enredo é sobre as opressoras facetas da realidade (a perda, o luto, a
coibição dos sentimentos) e de como podem elas serem confrontadas com as
possibilidades libertadoras da fantasia e da imaginação.
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