sexta-feira, 26 de abril de 2024

A História Sem Fim


 Durante os anos 1970, houve uma série de movimentos cinematográficos que evocaram em grande medida um sentimento na sociedade da época, onde uma descrença, um cinismo, uma recusa à credulidade e à ingenuidade apontava para a percepção de uma realidade dura, bruta e cruel. Não se tratava somente da Nova Hollywood, com suas obras autorais e desafiadoras (embora elas sejam, sim, poderosamente exemplares), mas de toda uma miríade de produções da época –questionava-se as noções de sociedade e de relacionamentos por meio de filmes sexualmente audaciosos (“O Último Tango Em Paris” e “O Império dos Sentidos”); expiava-se traumas históricos e políticos contundentes (“O Franco-Atirador”), a desilusão era ilustrada em uma série de imagens poderosas (“Cinzas No Paraíso”, “Meu Ódio Será A Sua Herança” e “Apocalypse Now”).

Essa vertente prosseguiu nos anos 1980, encontrando vez ou outra, uma obra que se posicionava contra essa tendência subconsciente –foi, portanto, nessa década que as coisas começaram a mudar. Surgiram realizadores, como Steven Spielberg e George Lucas, que tomaram para si a responsabilidade de fazer representativo um novo cinema, um cinema que falasse às aspirações insondáveis do ser humano, que desse asas à sua mais tresloucada imaginação. Muitos foram os filmes que deram corpo, nos anos 1980, a esse propósito, mas, em 1984, surgiu um filme que, à sua maneira, representava, qualificava e arrematava toda essa discussão na alegoria de seu enredo. Esse filme era “A História Sem Fim”.

Não faltaram filmes de inapelável pessimismo no ano de 1984 –nesse período foram lançadas as lúgubres ficções “O Exterminador do Futuro” e “1984 de Orwell”; o árido e dramático “Paris, Texas”; o irônico, inquietante e arrebatador “Amadeus”; o amargo e reflexivo “Era Uma Vez Na América” e tantos outros. E foi nesse período também que, num reflexo da desilusão recorrente da década anterior, o Movimento Punk ganhou mais expressão na música e nas artes, trazendo uma juventude que, farta e desesperada de tanta subversão, optava por uma implosão de valores por meio da anarquia.

De uma certa maneira, um pouco de tudo isso pode ser trazido para a reflexão proposta em “A História Sem Fim” que, na época, muitos poucos compreenderam, preferindo enxergá-lo como aquilo que em princípio ele parecia, um simples filme infantil. Quando a trama começa, somos apresentados ao dia-a-dia melancólico do menino Bastian (o pequeno Barret Oliver) cuja mãe morreu (!) e cujo pai atarefado, pragmático e incapaz de lidar com os sentimentos de luto do filho, o deixa só na maior parte do tempo. Bastian sofre bullying na mão de outros garotos valentões na escola e, diante dessa situação, só lhe resta buscar refúgio num sotão escolar e nas páginas de um livro que um senhor bibliotecário lhe emprestou, um livro intitulado “Never Ending Story” –ou A História Sem Fim.

Bastian mergulha assim na leitura, descortinando para o público a história dentro da história que haverá de se revelar no filme: Num mundo chamado ele próprio de Fantasia, um conselho de criaturas diversas debate um perigo incalculável que se aproxima, denominado tão somente de O Nada, um mal que simplesmente encerra a existência de tudo aquilo que alcança. Esse conselho escolhe um herói para partir numa imponderável jornada rumo a uma improvável chance de salvação, o garoto indígena Atreyu (Noah Hathaway) que, em princípio, não faz a menor ideia de por onde começar.

Nessa curiosa jornada –acompanhado de perto pelo atencioso leitor Bastian –Atreyu vivencia diversas situações diferentes e que permitem interpretações de significados opostos em adultos ou crianças. Quando, por exemplo, Atreyu se defronta com o Lobo Gmork, um lacaio do próprio Nada –e que surge num sinistro diálogo oculto numa penumbra que só possibilita enxergar seus olhos ameaçadores –a cena remete, às crianças, ao personagem tipicamente mau de “Os Três Porquinhos” ou “Chapeuzinho Vermelho”, mas os adultos notarão, no diálogo que se segue, que o Lobo é, em si, uma ilustração do fascismo –“Assuste-os e você será capaz de controlá-los!” –há também a sequência em que Atreyu e seu cavalo Artax atravessam o Pântano da Tristeza, um lugar que identifica os sentimentos sombrios no indivíduo e por meio deles o leva a afundar em suas águas lamacentas, numa poderosa alegoria da depressão.

A medida que a trama avança, e elementos de metalinguagem e quebra da quarta parede, cruciais para o desfecho, começam a interferir na leitura de Bastian, “A História Sem Fim” permite compreender que seu enredo é sobre as opressoras facetas da realidade (a perda, o luto, a coibição dos sentimentos) e de como podem elas serem confrontadas com as possibilidades libertadoras da fantasia e da imaginação.

Genial também no aproveitamento criterioso e seletivo da premissa do livro de Michael Ende em que se baseia, este filme dirigido pelo alemão Wolfgang Petersen (sendo os próprios realizadores alemães especialistas em capturar o aspecto tangível e visual da desilusão) é um clássico infantil dos anos 1980 que pede por uma revisão a fim de que seja (re)descoberta sua fascinante metáfora sobre a oposição entre as trevas de um cinismo inerente à realidade e a luz de um gênero fantástico que aflorava em obras de bem-intencionado apelo escapista.

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