Existe um termo comum, especialmente entre expectadores mais jovens que é o “filme que explode cabeças”, quando um longa-metragem é de tal maneira surpreendente, inesperado e desafiador das convenções que sua proposta nos pega completamente desprevenidos. Apesar disso, os exemplos desse tipo particular de cinema não são tão novos assim: Temos as obras peculiares de Terry Gilliam, como “Bandidos do Tempo”, “O Pescador de Ilusões” e “Brazil-O Filme”, além dos delírios quase indecifráveis de Alejandro Jodorowsky, como “A Montanha Sagrada” ou “Santa Sangre”, inúmeros foram os filmes dessa orientação que surgiram (uns ainda hoje obscuros) nos anos 1980 –“AsAventuras de Buckaroo Banzai”, o italiano “Volere, Volare” –e outros mais nos anos 1990 –“Matrix”, “Cidade das Sombras”, “A Estrada Perdida”, “Vanilla Sky”. Mas, já havia um tempo que o cinema, sobretudo, o cinema norte-americano, estava acomodado, entregando ao público produções redondinhas, nada audaciosas, preocupadas em agradar sem exacerbar os sentidos; reflexo, certamente, da pandemia que deixou produtores e investidores em geral receosos de que seus trabalhos não corressem maiores riscos.
Então, eis que os desconhecidos diretores
Daniel Kwan e Daniel Scheinert, com o aval da A24 e dos Irmãos Anthony e Joe
Russo (produtores) entregam, sem mais nem menos, o desconcertante “Tudo Em Todo
Lugar Ao Mesmo Tempo”. Um filme para rir, chorar, vibrar e questionar a
realidade da existência (!). Há, como logo fica claro, coragem de sobra nessa
iniciativa. A trama não se acomoda em gênero nenhum e do início ao fim, não
ostenta qualquer constrangimento por suas esquisitices (que são inúmeras) e nem
por abraçar um certo ridículo em vários momentos. É um cinema assumidamente
imperfeito, porém, tão evidente da paixão de todos os envolvidos no projeto que
a soma de suas partes resulta em algo simplesmente único.
Eis os fatos: Evelyn (a maravilhosa Michelle
Yeoh) é uma imigrante chinesa vivendo nos EUA tocando o negócio da família, uma
tumultuada lavanderia. Ao seu lado, ela tem seu marido carinhoso e quase sempre
omisso, Waymond (Ke Huy Quan, de “Os Goonies”), sua filha Joy (Stephanie Hsu),
cuja orientação sexual, bem como a atual namorada Becky (Tallie Medel) Evelyn
ainda não foi capaz de tolerar, e seu pai já idoso, Gong Gong (James Hong). A
rotina de Evelyn é tumultuada, entre discussões com a filha e atritos com o
marido, ela deve lidar com a exigência dos clientes e, principalmente, com os
aborrecimentos a envolver a Receita Federal –numa consulta a uma impaciente
auditora fiscal (Jamie Lee Curtis, impagável), Evelyn descobre que a
irregularidade de seus impostos pode comprometer todo o negócio da família.
Até então, ainda que conduzido com bastante
primor, descontração e criatividade, havia algum sentido em tudo o que se sucedia
no filme, contudo, a partir da visita de Evelyn, Waymond e Gong Gong ao prédio
da Receita Federal, algo acontece: Waymond é ‘possuído’ pela mente de uma
variante sua (!) vindo de uma realidade alternativa (!!), e ele afirma que
precisa da ajuda de Evelyn a fim de evitar certos acontecimentos que podem
levar à destruição de todo o multiverso! A partir de então cada instante de “Tudo
Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo” conta no sentido de acrescentar algo, seja
significado, seja subtexto, à trama mirabolante que os diretores parecem tão
ávidos por contar. A fim de confrontar adequadamente os inimigos que aparecem
do nada, Evelyn descobre, há um recurso denominado ‘trampolin’ por meio do
qual, ao realizar um ato esquisito qualquer (como cortar o vão dos dedos da mão
com papel, fazer uma declaração de amor imprevista, etc), as habilidades oriundas
de outras variantes alternativas suas podem ser acessadas (como numa outra vida
em que ela virou estrela de filmes de artes marciais). A partir desse mote, os
Daniels criam um filme que jamais habita uma zona de conforto: Em sua encenação
pulsante, hilária enquanto comédia, comovente enquanto drama (características
que se alternam em questão de segundos!), eles visitam as diferentes realidades
de Evelyn usando todas as ferramentas que o cinema dispõe para tal impressão –a
depender do universo revelado, o formato e o tamanho da tela pode ser diferentes
–incluindo aí um jogo formidável de metalinguagem; a realidade original que
vinhamos acompanhando se revela, na realidade, o filme sendo assistido, durante
a premiére, em outro universo. E ainda temos uma referência divertidíssima à “Ratatouille”,
à “2001-Uma Odisséia No Espaço”, bem como a inesperada inserção de uma sequência
com pedras, absolutamente silenciosa e sem diálogos falados, emocionante e
poética. Coragem é pouco!
Em algum momento, vai ficando claro que, por
baixo de toda a sinergia inquieta da direção cheia de propriedade dos Daniels,
e da história de incessante euforia que, por milagre, eles conseguem moldar, “Tudo
Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo” é uma história sobre a família de Evelyn, sobre
sua relação amorosa ainda que assombrada por ressentimentos com seu marido, e
principalmente, sobre o relacionamento entre mãe e filha, dela com Joy, cuja
variante conhecida como Jobu Tupaki, se revela um ser onipotente cuja criação,
a “Rosquinha”, pode pôr fim à toda existência. Por essa curiosa manobra –na qual
todo o contexto inacreditável e fantasioso do filme termina servindo de
alegoria a uma problemática familiar –eu me lembrei do cult-movie “Possessão”, embora a obra de Andrzej Zulawski e este
filme dos Daniels sejam trabalhos completamente diferentes.
O grande diferencial de “Tudo Em Todo Lugar Ao
Mesmo Tempo”, além de tudo o mais, é a incontornável habilidade com que tudo é
realizado, seu elenco é de uma emoção inigualável, seus personagens são
cativantes (mesmo os antagonistas), suas cenas de ação são arrojadas, e o
enlace entre facetas tão diferentes é assombrosamente harmonioso para uma
narrativa que se presta a ir de um extremo a outro em tão pouquíssimo tempo.
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