quinta-feira, 5 de maio de 2022

Doutor Estranho No Multiverso da Loucura


 Nos quadrinhos, as inúmeras tramas paralelas que se sucedem e que convergem, muitas vezes, aos mesmos personagens, ambientes e situações raramente acabam despertando nos fãs a minúcia para encontrar detalhes contraditórios ou erros de continuidade. É curioso, pois que, em sua bem-sucedida tentativa de levar esse mesmo status narrativo ao cinema, a Marvel Studios, volta e meia, se defronte com esse problema: Fãs, um tanto quanto chatos e minimalistas, apontando esta ou aquela imperfeição nas amarras de suas histórias.

Já contando mais de vinte produções em sua filmografia –além de algumas séries! –a Marvel começa a enfrentar esta e outras velhas questões, já antigas nos quadrinhos, a respeito de quanto material o expectador deve assim ter conhecimento para compreender na íntegra o filme que irá ver no cinema. E a verdade a ser encarada, hoje, é que... não, não há como assistir a tudo, saber de tudo, ter conhecimento de tudo. E, se esse é um fato bem aceito aos leitores de quadrinhos, com o tempo, os expectadores de cinema, ainda que bem mais exigentes, terão de aceitar também.

Tomemos “Doutor Estranho No Multiverso da Loucura” como exemplo. A princípio, as maiores referências adotadas em sua trama são o filme “Homem-Aranha Sem Volta Para Casa”, com participação do Dr. Estranho (o ótimo Benedict Cumberbatch) e do qual é continuação quase direta, a série “WandaVision” que, em função da participação fundamental de Wanda Maximoff (a sensacional Elizabeth Olsen), acaba também dando continuidade à sua trama, e a série “Loki”, cuja abordagem do Multiverso, ainda que indiretamente, influencia todos os desdobramentos que veremos neste filme; e não tenha dúvidas, em outros projetos futuros também! Há também de se considerar o primeiro “Doutor Estranho” –a introdução, afinal, de muitos dos personagens presentes aqui –e o próprio “Vingadores-Ultimato” –ponto crucial para quase todas as histórias desenvolvidas pela Marvel daqui para frente –mas, a verdade é que, dentro em breve, será impossível acompanhar a tudo.

Como ocorre nos quadrinhos, meu conselho é o expectador  desencanar e curtir a viagem, aproveitar a trama, construída pelos roteiristas a fim de ser o mais satisfatória possível bastando em si mesma, mas certamente dependente (e referente) a várias outras vindas antes e depois. Os enredos da Marvel Studios serão, assim, uma miríade de narrativas que acontecem para frente (os filmes vindouros), para trás (os filmes que já foram feitos) e para os lados (alguns casos de obras que se passam quase simultaneamente aos eventos deste), e aos poucos, se não foram todos conferidos, com tempo, haveremos de descobrí-los.

“Multiverso da Loucura” traz Stephen Strange às voltas com uma jovem literalmente única: America Chavez (a carismática Xochiti Gomez) dotada do raro poder de teleportar-se entre uma realidade paralela e outra. Tal poder a torna alvo de ninguém mais, ninguém menos que Wanda, a Feiticeira Escarlate, que desde os eventos atribulados de “WandaVision” –onde sequestrou toda uma cidade para criar uma ilusão feliz onde vivia ao lado do trágico Visão (Paul Betany) e de seus dois filhos pequenos, materializados pelo poder incomensurável de sua magia –almeja pegar os poderes de America para si a fim de reaver seus filhos perdidos, nem que seja tirando-os de outra realidade alternativa.

Na batalha que se segue, Estranho é obrigado a valer-se inadvertidamente dos poderes de America –os quais ela não sabe controlar –e pular para outros universos, tentando escapar de Wanda.

Astuta que só, a Marvel Studios vale-se desse mote para presentear os fãs com momentos vibrantes e referências a outros personagens, numa manobra um pouco parecida com a aparição-surpresa de Andrew Garfield e Tobey Maguire em “Sem Volta Para Casa”. Uma dessas surpresas –só para ficarmos naquelas que os expectadores já tinham ideia de antemão –é a presença de Charles Xavier (Patrick Stewart), o Professor X, anunciando que, em algum lugar do horizonte, os X-Men estão bem próximos de aparecer no Universo Marvel.

E quanto ao filme em si? Embora inquieto, envolvente, visualmente esplendoroso e tecnicamente impecável, é necessário guardar as devidas proporções ao apreciarmos “Multiverso da Loucura”, sobretudo tendo como expectativa os incondicionalmente arrebatadores “Vingadores-Guerra Infinita” e “Ultimato”. A Marvel, como foi dito em outras ocasiões, estabeleceu com com esses dois trabalhos, um patamar tão alto que representa um desafio, e um empecilho, para todas as produções que vieram depois deles igualar tamanha excelência. E com “Multiverso da Loucura” não é diferente. A saída, um tanto brilhante, da Marvel Studios aqui é focar na diferenciação; este novo filme estrelado por Stephen Strange é, pela primeira vez no UCM, um filme de terror, cortesia da desenvoltura de gênero do diretor Sam Raimi, substituindo o diretor anterior, Scott Deriksson (aqui como produtor executivo). De um estilo forte e personalíssimo –o que curiosamente não colide com as predisposições muito comerciais da Marvel –Raimi (que realizou, além dos cultuados filmes de série “Evil Dead”, a “Trilogia Homem-Aranha” com Tobey Maguire e o primeiro “filme-quadrinho” da era moderna, “Darkman-Vingança Sem Rosto”) acrescenta à narrativa os elementos que tanto ama trabalhar, como os movimentos inusitados de câmera, os jump-scares, e o apreço por ícones tenebrosos como zumbis (o desfecho final é impagável!), olhos fulgurantes de possessão (Elizabeth Olsen, grande atriz, consegue ficar assustadora apesar da grande beleza) e um senso de humor muito peculiar a temperar toda essa morbidez.

A assinatura de Raimi, assim sendo, é nítida e constante neste filme, embora ele seja, nítida e constantemente, um filme também da Marvel Studios.

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