sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Frances


 Há em “Frances”, do diretor Graeme Clifford, uma densidade que o faz incontornavelmente deprimente, contudo, não havia, de fato, como evitar tal sensação diante da trajetória tão singular –e hoje profundamente alarmante e inacreditável –da atriz norte-americana Frances Farmer, cuja inadequação aos padrões de conduta de sua época (meados dos anos 1930 e 40) a levaram a sofrer pressões de tal forma severas que a levaram à loucura.

Mas, vamos por partes. Nascida na cidade de Seattle, ainda no início da década de 1930, Fances Elena Farmer (vivida do início ao fim pelo minimalismo impecável de Jessica Lange), aos 16 anos, choca a sociedade local com uma dissertação na qual ela questiona a existência de Deus. Já ali, Frances exibia as posturas avançadas que viriam, nos anos por vir, a lhe cobrar um alto preço: Questionadora para com a religião cegamente devota –não era necessariamente atéia, mas bastante ferrenha em relação às suas dúvidas cristãs –e inclinada ao comunismo, como fica bem claro com a longeva amizade que nutre, ao longo da vida, com o jornalista de esquerda Harry York (Sam Shepard, casado com Jessica na vida real).

Logo, Seattle se torna pequena demais para Frances que, após revelar-se promissora em peças teatrais locais e atrever-se numa viagem à Rússia, acaba obtendo um contrato de exclusividade com a Paramount Pictures, onde o filme “Meu Filho É Meu Rival” a converte em uma estrela –e, nesse processo, ao casar-se com o também ator Dick Steele (Christopher Pennock), Frances inicia uma sucessão de relacionamentos mal-fadados.

Farta do esquema hollywoodiano de produção –onde as atrizes não tinham qualquer interferência na qualidade do material, servindo de mero adereço às produções –Frances busca desafios profissionais mais estimulantes em Nova York, na Broadway, onde uma peça de cunho profundamente filosófico e artístico lhe desperta as atenções. Ela termina também na cama do autor do script, o dramaturgo Clifford Odets (Jeffrey DeMunn, de “Cidadão X”), só para ser descartada quando os homens não mais precisam dela: Quando a peça atinge inquestionável sucesso de público, em grande parte devido ao seu status de estrela cinematográfica, os produtores a substituem, durante os preparativos para a apresentação em Londres, por outra protagonista, e Clifford a rejeita com um grosseiro bilhete anunciando a chegada de sua esposa.

Relutante, Frances regressa para Hollywood, onde as coisas agora mudaram: Sua predileção pelo teatro, em detrimento às produções de cinema, fizeram desgostoso o todo-poderoso chefe da Paramount Pictures (Allan Rich, de “Quero Dizer Que Te Amo”) que, ao lado da crítica insidiosa Louella Parsons, coloca toda Los Angeles contra Frances. Exaurida pelo ambiente tóxico, Frances –que, até então, começa a demonstrar certo grau de alcoolismo devido à tumultuadas filmagens realizadas à contra-gosto no México –começa a ter seus primeiros surtos de ansiedade, o que a leva a ser internada numa clínica psiquiátrica pela mãe (Kim Stanley, de “Os Eleitos”, também com Shepard no elenco).

Será só o começo de seu pesadelo.

Os médicos se recusam a liberá-la para uma vida normal e saudável –em parte, pela boa repercussão que a presença de uma estrela de cinema internada proporciona à clínica, em parte, pela insistência negativista da mãe –mesmo diante de indícios pertinentes vindos da própria Frances de que ela é mentalmente sã. Quando finalmente sai –não sem antes tentar uma fuga, auxiliada pela única pessoa que continua ao seu lado em todos os percalços, Harry York –ela é deixada aos cuidados da mãe, tendo sua autonomia como adulta legalmente suspensa.

Contudo, a mãe de Frances (no roteiro romantizado escrito por Eric Bergren, Christopher De Vore e Nicholas Kazan, este também roteirista de “O Reverso da Fortuna”) revela-se menos alguém preocupada com o bem-estar da própria filha, e mais um indivíduo disposto a enxergar nela as aspirações que almejou para si: A despeito da vontade cada vez maior de Frances afastar-se por completo do sufocante e pernicioso sistema de Hollywood (mostrado no filme como um universo abusivo e dissimulado), sua mãe lhe dá somente duas alternativas; ou regressa de uma vez por todas à vida de atriz famosa, ou retorna para as clínicas psiquiátricas. A medida que os atritos se sucedem –pois, Frances se recusa veementemente a viver uma vida que não quer para si –as instituições nas quais é enviada por sua mãe, com todos os aparatos legais, vão se tornando cada vez mais precárias e degradantes, em sequências lúgubres e consternadoras que certamente inspiraram Jane Campion em “Um Anjo Em Minha Mesa”. Num dos últimos sanatórios, Frances era estuprada por quem pagasse mais aos enfermeiros pela chance de fazer sexo com uma estrela de cinema (!). Até que, por fim, Frances é submetida a uma lobotomia!

Um retrato impiedoso das circunstâncias arcaicas de tempos mais remotos –sejam os tratamentos psiquiátricos atrozes e os especialistas da área desprovidos de qualquer tato para com os pacientes; sejam os meandros corrosivos e absolutamente tendenciosos da impressa e dos bastidores da fama –“Frances”, mesmo que pesado e amargo, ainda é mais ameno que a triste história real na qual se inspira. Mesmo assim, o filme não seria nem metade do que é não fosse a presença primorosa de Jessica Lange no papel principal: Ela foi indicada ao Oscar 1983 de Melhor Atriz onde concorreu com Julie Andrews (“Victor Ou Victória”), Debra Winger (“A Força do Destino”) e Sissi Spacek (“Missing-O Desaparecido”), e perdeu para Meryl Streep por “A Escolha de Sofia”. Prova de que, não fosse aquele trabalho descomunal de Meryl, ela teria ganhado em qualquer outra edição, é que, no mesmo ano, Jessica foi premiada com o Oscar de Melhor Coadjuvante por “Tootsie”, provavelmente uma compensação por parte da Academia.

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