sexta-feira, 21 de abril de 2023

O Urso do Pó Branco


 O cinema de entretenimento às vezes encontra caminhos tortuosos para chegar ao seu público, e com isso, ocorre de surgir na ribalta produções de origem um tanto incomum. “Cocaine Bear”, dirigido pela atriz Elizabeth Banks é um desses casos. Inspirado numa história real –e, por isso mesmo, encarado com alguma seriedade por alguns que lhe foram conferir –o filme em si abre mão de seu realismo para se fazer uma tremenda homenagem aos filmes slasher dos anos 1980 (época em que a trama se passa), à mescla desigual entre terror e comédia (o chamado ‘terrir’) e ao cinema B em geral, vez ou outra, fonte de obras inusitadas que desafiam a crença do expectador pelo simples absurdo de sua proposta. Em sua carreira como atriz, Banks trabalhou com Sam Raimi (na “Trilogia Homem-Aranha”) e com James Gunn (em “Seres Rastejantes”), entre vários outros diretores –entretanto, é essencialmente a influência desses dois que parece guiar as noções narrativas que ela demonstra aqui. A lembrar que Elizabeth Banks também já havia dirigido um reboot de “As Panteras”.

De Sam Raimi, ela empresta a percepção de gênero, o slasher, no qual a contagem de corpos vem a ser a estrutura que compõe a história (ainda que os personagens bolados para serem basicamente as vítimas do urso sejam elaborados num viés de comédia), e também o apreço por jump scares (tão abundantes em obras como “Evil Dead”); já de James Gunn, ela pega a concepção debochada com a qual molda núcleos inteiros de personagens norteados por uma certa galhofa, porém, inseridos num contexto que não deixar de ter tensão.

Na história real da qual o filme se baseia, um piloto de aeroplano que trafica droga para os EUA (uma característica non-sense do tráfico de drogas nos anos 1980, retratada no filme “Feito Na América”) pensa estar sendo seguido pela polícia e se livra de vários malotes de cocaína  enquanto sobrevoava o Parque Florestal de Chattahoochee-Oconee, na Geórgia, antes dele próprio pular do avião e perder a vida (!). Na realidade, os malotes encontrados e consumidos pelo urso (na verdade, uma ursa) levaram o animal a ter uma overdose sendo encontrado dias depois pela polícia –o animal, hoje, pode ser visto pelo público, empalhado no Kentucky Fun Mall. Para muito além dessa ocorrência curiosa que se espalhou de boca em boca pelos EUA na época, a diretora Elizabeth Banks imaginou todo um filme no qual o urso, enlouquecido pelos efeitos da droga, libera sua fúria contra diversos personagens humanos que inadvertidamente cruzam seu caminho.

E aí entra a sacada bastante inspirada do filme, em não levar-se a sério e construir personagens que são basicamente caricaturas divertidas as quais se acompanha com certo prazer sádico suas idas e vindas, a escapar (ou não) das garras do urso ensandecido. Temos assim os dois comparsas de traficantes Daveed (O’Shea Jackson Jr., de “Straight Outta Compton”) e Eddie (Alden Ehrenreich), instruídos pelo chefão Syd (o falecido Ray Liotta, a quem o filme é dedicado) a recuperar os malotes perdidos a fim de minimizar seu prejuízo; as duas crianças Dee Dee (Brooklyn Prince, de “Projeto Flórida”) e Henry (Christian Convery, da série “Sweeth Tooth”), numa tentativa travessa de cabular aula; a mãe de Dee Dee (Keri Russell) no encalço dos dois; os obtusos guardas-florestais Liz (Margo Martindale, de “Secretariat” e “Menina de Ouro”) e Peter (Jesse Tyler Fergunson, da série “Modern Family”), e os policias Bob (Isaiah Witlock, de “A Última Noite”) e Reba (Ayoola Smart), cada qual ao seu jeito, tentando procurar as drogas extraviadas. Juntam-se a eles também os destrambelhados paramédicos Beth (Kahyun Kim) e Tom (Scott Seiss) –protagonistas de uma sequência insana de perseguição à bordo de uma ambulância! –e um grupo de marginais. Todos esses personagens acabam servindo de fio condutor à trama, na simplicidade atroz de sua proposta: Não é segredo para ninguém que a maioria deles serve de carne para abate ao urso protagonista. E tão mais válidas são suas participações quanto mais tresloucadas e memoráveis forem suas mortes. E nesse sentido, elas realmente são –Elizabeth Banks fez bem seu dever de casa e incorpora maravilhosamente bem o espírito de produção trash (embora o filme, com um orçamento razoável de 35 milhões de dólares e um CGI satisfatório da fera alucinada não seja, deveras, uma produção trash) em sequências sucessivas que unem mortes de incontida sanguinolência macabra com um humor irreprimível inerente ao fato de ser um urso surtado de tanta droga a praticar essas atrocidades: Como quando ele salta alucinadamente de uma árvore para outra escolhendo entre capturar o menino Henry ou o idiota Peter –termina escolhendo este último, pois ele chafurdou, minutos antes, num monte espalhado de cocaína (!); ou quando invade o Q.G. dos Guardas-Florestais e a afobada Liz desfere tiros com sua arma que acertam os marginais que se refugiavam ali, ao invés do urso (!?); ou o encontro entre o policial Bob e os traficantes Daveed e Eddie num gazebo onde acham vários malotes perdidos e após uma troca de tiros hilária (que rende um par de dedos decepados à Daveed!) são encontrados pelo urso, que acaba desmaiando sobre Eddie, quase esmagando-o (!).

São várias as situações concebidas pela diretora Banks onde um humor imprevisto se choca com a sensação de perigo proporcionada pelo urso alucinado, e é necessário compreender integralmente que isso faz parte da diversão, a forma descontraída, reverente e descompromissada com a qual ela rememora uma característica já não tão comum nas obras de entretenimento de hoje em dia. Por isso mesmo, muito de “Cocaine Bear” –não só a reconstituição de época enfatizada nos figurinos e na trilha sonora –remete à década de 1980, não apenas como referência, mas como evocação. É quase como se “Cocaine Bear” FOSSE uma realização daquele período de fato. O que não deixa de ser uma oportunidade para lembrar o quando o entretenimento já foi inacreditável e divertidamente inconsequente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário