terça-feira, 9 de maio de 2023

Blonde


 A Academia de Artes Cinematográficas executou uma manobra de muita sabedoria ao indicar Ana de Armas ao Oscar de Melhor Atriz por “Blonde”, ainda que em todas as outras indicações, o filme de Andrew Dominik (de “O Assassinato de Jesse James Pelo Covarde Robert Ford”) tenha prevalecido mesmo no nada honroso Framboesa de Ouro, que ‘premia’ os piores do ano. A dica está dada: É na atuação vulnerável, corajosa, minimalista e circunspecta de Ana de Armas que repousa o mais absoluto e brilhante mérito do filme.

“Blonde” –por sua vez, inspirado no livro de Joyce Carol Oates –é desrespeitoso como biografia (trechos da vida de Marilyn Monroe são omitidos e outros, fictícios, são acrescentados na maior cara de pau), irregular como narrativa (diversas passagens soam fragmentadas e inconclusas, algo incabível numa obra de duas horas e quarenta minutos de duração) e exasperante como cinema (o estilo imposto por Dominik, muitos foram os críticos a reparar, converte a vida de Marylin Monroe num pesadelo à la David Lynch, e as semelhanças com “Império dos Sonhos” não são nenhuma coincidência).

Nessa via crusis de desilusão e dissolução pessoal que Dominik faz parecer que foi a vida de Marilyn, adentramos sua jornada quando ainda era uma criança (interpretada pela pequena Lily Fisher) e atendia pelo nome Norma Jeane, sob os cuidados da mãe (Julianne Nicholson, de “Eu, Tonya”) que logo manifesta contundentes sinais de demência, o que leva Norma ao orfanato –não sem antes mostrar a ela um retrato carcomido de quem teria sido o pai que ela jamais conheceu. Esse detalhe (a figura paterna inexistente), a tentativa de afogamento numa banheira e o incêndio em Hollywood que ela foi forçada a testemunhar ainda pequena serão elementos que povoarão o subconsciente da personagem principal na forma de complementos visuais e cênicos de seus mais perenes tormentos.

Já crescida, e vivida com propriedade inquestionável pela belíssima e talentosa Ana de Armas, Norma Jeane, agora convertida quase que totalmente na persona artística que ela adota para si, Marilyn Monroe, vai galgando os degraus da fama hollywoodiana, não sem, vez ou outra, conhecer todo seu aspecto mais sórdido –como os ultrajantes ‘testes do sofá’, e as fotos de nudez em início de carreira que depois vieram à público.

A personalidade de Marilyn e, mais precisamente, as celeumas que acarretaram seus mais inapeláveis pesadelos são desvendados assim através de sucessivos lampejos que visitam, em ordem relativamente cronológica (e alternando cenas em preto & branco e em cores), certas etapas de sua vida, sem no entanto, proporcionar-lhes um encadeamento de lógica, presente num filme mais normal: Os testes psicologicamente exaustivos para obter o primeiro papel de importância (no suspense “Almas Desesperadas”); a gradual consolidação da fama e do mito sexual em “Torrentes de Paixão”, o que levou-a ao menage-à-trois quase desastroso para sua carreira com o filho de Chaplin e o filho de Edward G. Robinson (Xavier Samuel e Evan Williams), na primeira de suas inúmeras entregas sentimentais a homens imaturos, perniciosos e/ou abusivos; a gravidez interrompida por pressões externas durante a realização de “Os Homens Preferem As Loiras”; o casamento com Joe DiMaggio (Bobby Cannavale, de “Homem-Formiga”) cuja turbulência doméstica se intensificou durante a comoção por sua famosa cena do vestido esvoaçante em “O Pecado Mora Ao Lado”; a dependência emocional surgida em seu relacionamento com o dramaturgo Arthur Miller (Adrien Brody) e que levou aos surtos homéricos nos sets de filmagem de “Quanto Mais Quente Melhor”, onde ela passou a receber injeções de benzedrina; e, por fim, a relação extremamente abusiva e tóxica com o presidente John Kennedy (Caspar Phillipson), o que conduziu-a para um estado ainda mais irreversível de prejuízo emocional.

Na liberdade poética que adota para seu filme –abertamente uma fábula lúgubre sobre Marilyn Monroe e as espirais de decepção do showbuziness –o filme de Andrew Dominik não poupa ninguém, nem os parceiros de Marilyn ao longo da vida (Cass Jr. e Eddy Jr. são imorais e degenerados; DiMaggio é um homem truculento e incompreensivo; Miller, um marido ausente e egoísta; e Kennedy é retratado como um homem asqueroso e abjeto) nem sua estrela maior –mostrada na potencialidade irreprimível de suas carências e na totalidade de sua tristeza. Tanta desventura reflete, como muitos inclusive notaram, uma faceta um tanto questionável de misoginia da parte do diretor Dominik, uma vez que, tal e qual um certo Lars Von Trier, sua narrativa se abastece da sucessiva e constantemente revitalizada infelicidade de uma mulher, cujo sofrimento é reiterado sem tempo para se retomar o fôlego.

No fim, o que resta da tristeza irrestrita a qual somos expostos sem filtros neste comiserativo “Blonde” é a presença inigualável de Ana de Armas, numa atuação milagrosa capaz de trazer dignidade, vivacidade, excelência e encanto à sua protagonista.

Tudo que o filme de Andrew Dominik, para o bem e para o mal, não tem.

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