Estrelado por Ben Affleck e por Jennifer Garner antes de terem se tornado um casal (e depois se separado...), “Demolidor-O Homem Sem Medo”, apesar de lançado num não tão longínquo 2003, é um filme que, pode-se dizer, pertence a uma outra época. Não havia ainda a Marvel Studios e seu universo compartilhado –o todo poderoso produtor da Marvel hoje, Kevin Feigi, comparece numa modesta função de produtor executivo –e certamente, não havia a aclamada série da Netflix, “Demolidor”, estrelada por Charlie Cox, com a qual o personagem é mais merecidamente relacionado. Mais até: Não existia ainda uma fórmula específica para adaptar histórias em quadrinhos para o cinema com garantia de êxito e integridade artística; haviam sido lançados, poucos anos antes, o “X-Men” de Brian Singer, e o “Homem-Aranha”, de Sam Raimi; “X-Men 2” e “Hulk”, de Ang Lee, seriam lançados naquele mesmo ano.
Por sinal, é o primeiro filme do Homem-Aranha
de Raimi que exerce curiosa influência sobre este trabalho do diretor Mark
Steven Johnson (de “Quando Em Roma”): Bastante relacionado com o aracnídeo nos
quadrinhos por também possuir virtudes acrobáticas, o Demolidor ganhou, depois
do imenso sucesso do filme estrelado por Tobey Maguire, uma injeção de
orçamento dos Estúdios Fox para que fossem turbinados seus efeitos especiais
onde era visto balançando pelos prédios de Nova York, além de um upgrade nas lutas de artes marciais cuja
influência, por sua vez, vinha de “Matrix” e de “O Tigre e O Dragão” –até
então, o projeto era encarado como uma produção de baixo-orçamento e, por conta
disso, dotada de uma classificação mais flexível que o fazia propício a ter
doses mais generosas de violência.
O resultado é que “Demolidor”, inclusive por
conta do amadorismo vez ou outra flagrante de seu diretor, mal se equilibra
entre a obra mais transgressiva que queria ser e a realização mais pretensiosa
que passou a almejar.
Nessas condições somos apresentados a Matt
Murdock, rapaz que, num breve flashback
que domina os primeiros trinta minutos de filme, é visto perdendo a visão num
acidente radioativo ainda criança (interpretado então por Scott Terra, de
“Malditas Aranhas”). Entretanto, ele ganha, no processo, habilidades
sobre-humanas: Sentidos ampliados que o permitem compensar a cegueira com uma
percepção sem igual, onde pode até mesmo ler as emoções alheias ao ouvir os
batimentos cardíacos (!).
Com a morte de seu pai, um boxeador do bairro
nova-iorquino de Hell’s Kitchen, pelas mãos de gangsters inescrupulosos,
Murdock divide sua vida adulta em duas ocupações: Como advogado formado, ele
atende de dia clientes oprimidos pelos empresários à frente de sua firma onde
tem como sócio o fanfarrão Foggy Nelson (vivido por Jon Favreau, o diretor do
primeiro “Homem de Ferro” alguns anos depois). Já à noite, Murdock (que, à
propósito, ostenta a musculatura e a pose de galã de Ben Affleck) esconde sua
identidade por trás da máscara do vigilante Demolidor, para caçar os bandidos
que a justiça meramente não foi capaz de punir, valendo-se de suas habilidades
incomuns.
Em algum momento, tanto Matt Murdock, o
advogado, quanto Demolidor, o vigilante, chamam a atenção do insidioso Wilson
Fisk, o Rei do Crime (interpretado pelo saudoso Michael Clarke Duncan, chapa de
Ben Affleck desde que fizeram juntos “Armaggedon”) que coloca no encalço deles
–sem inicialmente saber que são a mesma pessoa –o assassino de aluguel
conhecido como Mercenário (o ótimo Colin Farrell, então começando a chamar a
atenção de Hollywood).
Contudo, o que vira mesmo o mundo do Demolidor
de ponta-cabeça é quando Murdock se envolve com a instável Elektra Natchos
(Jennifer Garner, recém-saída da série “Aliás-Codinome Perigo”) que, embora
enamorada dele nutre um desejo de vingança por seu alter-ego, Demolidor, crente
de que foi ele quem matou seu pai.
Ávido por adaptar diversos pontos antológicos
da trajetória do Demolidor dos quadrinhos, todos concebidos pela mente genial
do roteirista Frank Miller –e, de fato, essas passagens estão todas lá! –o
filme de Mark Steven Johnson exibe um roteiro precipitado, inclinado a várias
redundâncias que alcançam os momentos almejados sem no entanto elaborá-los com
mais primazia; exatamente o oposto do que os quadrinhos conseguiam fazer.
Há potencial pleno e constante em “Demolidor”,
e ele é sistematicamente sabotado pela pouca solidez de sua direção, que
entrega momentos bastante simplórios, contaminados por diversas opiniões
divergentes que foram moldando a produção: De um lado, os executivos da Marvel
e sua intenção de preservar o personagem dos quadrinhos (e nesse sentido, a
manutenção do fidelíssimo traje do herói é digna de aplausos), de outro, a
limitada capacidade do diretor em manter suas convicções e a vontade dos
produtores em esculpir um filme de sucesso com concessões mais genéricas de
narrativa convencional. Como dito no início, “Demolidor-O Homem Sem Medo”
pertence a uma outra época. É difícil hoje assisti-lo sem relacionar seu
resultado mambembe e claudicante com a excelência à toda prova das três
primorosas temporadas da série da Netflix –na qual não apenas Charlie Cox é um
Matt Murdock/Demolidor impecável, como também Vincent D’Onofrio entrega uma
atuação insuperável como Rei do Crime –e, mesmo à época, o filme não era
nenhuma obra-prima sendo apreciado por uma parcela do público mais como uma espécia
de ‘prazer culposo’, um trabalho imperfeito cujos lapsos descabidos
acrescentavam divertimento ao todo.
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