terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Demolidor - O Homem Sem Medo


 Estrelado por Ben Affleck e por Jennifer Garner antes de terem se tornado um casal (e depois se separado...), “Demolidor-O Homem Sem Medo”, apesar de lançado num não tão longínquo 2003, é um filme que, pode-se dizer, pertence a uma outra época. Não havia ainda a Marvel Studios e seu universo compartilhado –o todo poderoso produtor da Marvel hoje, Kevin Feigi, comparece numa modesta função de produtor executivo –e certamente, não havia a aclamada série da Netflix, “Demolidor”, estrelada por Charlie Cox, com a qual o personagem é mais merecidamente relacionado. Mais até: Não existia ainda uma fórmula específica para adaptar histórias em quadrinhos para o cinema com garantia de êxito e integridade artística; haviam sido lançados, poucos anos antes, o “X-Men” de Brian Singer, e o “Homem-Aranha”, de Sam Raimi; “X-Men 2” e “Hulk”, de Ang Lee, seriam lançados naquele mesmo ano.

Por sinal, é o primeiro filme do Homem-Aranha de Raimi que exerce curiosa influência sobre este trabalho do diretor Mark Steven Johnson (de “Quando Em Roma”): Bastante relacionado com o aracnídeo nos quadrinhos por também possuir virtudes acrobáticas, o Demolidor ganhou, depois do imenso sucesso do filme estrelado por Tobey Maguire, uma injeção de orçamento dos Estúdios Fox para que fossem turbinados seus efeitos especiais onde era visto balançando pelos prédios de Nova York, além de um upgrade nas lutas de artes marciais cuja influência, por sua vez, vinha de “Matrix” e de “O Tigre e O Dragão” –até então, o projeto era encarado como uma produção de baixo-orçamento e, por conta disso, dotada de uma classificação mais flexível que o fazia propício a ter doses mais generosas de violência.

O resultado é que “Demolidor”, inclusive por conta do amadorismo vez ou outra flagrante de seu diretor, mal se equilibra entre a obra mais transgressiva que queria ser e a realização mais pretensiosa que passou a almejar.

Nessas condições somos apresentados a Matt Murdock, rapaz que, num breve flashback que domina os primeiros trinta minutos de filme, é visto perdendo a visão num acidente radioativo ainda criança (interpretado então por Scott Terra, de “Malditas Aranhas”). Entretanto, ele ganha, no processo, habilidades sobre-humanas: Sentidos ampliados que o permitem compensar a cegueira com uma percepção sem igual, onde pode até mesmo ler as emoções alheias ao ouvir os batimentos cardíacos (!).

Com a morte de seu pai, um boxeador do bairro nova-iorquino de Hell’s Kitchen, pelas mãos de gangsters inescrupulosos, Murdock divide sua vida adulta em duas ocupações: Como advogado formado, ele atende de dia clientes oprimidos pelos empresários à frente de sua firma onde tem como sócio o fanfarrão Foggy Nelson (vivido por Jon Favreau, o diretor do primeiro “Homem de Ferro” alguns anos depois). Já à noite, Murdock (que, à propósito, ostenta a musculatura e a pose de galã de Ben Affleck) esconde sua identidade por trás da máscara do vigilante Demolidor, para caçar os bandidos que a justiça meramente não foi capaz de punir, valendo-se de suas habilidades incomuns.

Em algum momento, tanto Matt Murdock, o advogado, quanto Demolidor, o vigilante, chamam a atenção do insidioso Wilson Fisk, o Rei do Crime (interpretado pelo saudoso Michael Clarke Duncan, chapa de Ben Affleck desde que fizeram juntos “Armaggedon”) que coloca no encalço deles –sem inicialmente saber que são a mesma pessoa –o assassino de aluguel conhecido como Mercenário (o ótimo Colin Farrell, então começando a chamar a atenção de Hollywood).

Contudo, o que vira mesmo o mundo do Demolidor de ponta-cabeça é quando Murdock se envolve com a instável Elektra Natchos (Jennifer Garner, recém-saída da série “Aliás-Codinome Perigo”) que, embora enamorada dele nutre um desejo de vingança por seu alter-ego, Demolidor, crente de que foi ele quem matou seu pai.

Ávido por adaptar diversos pontos antológicos da trajetória do Demolidor dos quadrinhos, todos concebidos pela mente genial do roteirista Frank Miller –e, de fato, essas passagens estão todas lá! –o filme de Mark Steven Johnson exibe um roteiro precipitado, inclinado a várias redundâncias que alcançam os momentos almejados sem no entanto elaborá-los com mais primazia; exatamente o oposto do que os quadrinhos conseguiam fazer.

Há potencial pleno e constante em “Demolidor”, e ele é sistematicamente sabotado pela pouca solidez de sua direção, que entrega momentos bastante simplórios, contaminados por diversas opiniões divergentes que foram moldando a produção: De um lado, os executivos da Marvel e sua intenção de preservar o personagem dos quadrinhos (e nesse sentido, a manutenção do fidelíssimo traje do herói é digna de aplausos), de outro, a limitada capacidade do diretor em manter suas convicções e a vontade dos produtores em esculpir um filme de sucesso com concessões mais genéricas de narrativa convencional. Como dito no início, “Demolidor-O Homem Sem Medo” pertence a uma outra época. É difícil hoje assisti-lo sem relacionar seu resultado mambembe e claudicante com a excelência à toda prova das três primorosas temporadas da série da Netflix –na qual não apenas Charlie Cox é um Matt Murdock/Demolidor impecável, como também Vincent D’Onofrio entrega uma atuação insuperável como Rei do Crime –e, mesmo à época, o filme não era nenhuma obra-prima sendo apreciado por uma parcela do público mais como uma espécia de ‘prazer culposo’, um trabalho imperfeito cujos lapsos descabidos acrescentavam divertimento ao todo.

Hoje, todo mundo parece ter superado “Demolidor”: O Estúdio Fox (que já nem existe mais, tendo sido comprado pela Disney) lançou uma ‘versão do diretor’ em DVD (que enfatizava aspectos mais soturnos de algumas sub-tramas e enxugava certas redundâncias) e, anos mais tarde, produziu “Elektra”, um derivado de qualidade discutível focado na personagem de Jennifer Garner; Ben Affleck, embora tivesse certa esperança de uma continuação naqueles anos, desencanou e agora é mais lembrado como intérprete do Batman no mais recente “Liga da Justiça” (embora, também isso, não tenho dado muito certo); a Marvel, agora consolidada como estúdio, tem os direitos do Demolidor mais uma vez, e os fãs aguardam a qualquer momento por uma nova adaptação, talvez estrelada pelo bom Charlie Cox; já, Mark Steven Johnson realizou depois “Motoqueiro Fantasma”, com Nicolas Cage, além do outros projetos que só confirmaram sua falta de talento.

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