quinta-feira, 16 de março de 2023

007 - Sem Tempo Para Morrer


 Na última vez em que vimos o James Bond de Daniel Graig, em “007 Contra Spectre”, sua trajetória sinalizava uma espécie de desfecho para o personagem: A despeito disso jamais ter acontecido em qualquer outra versão, seja cinematográfica, seja literária, e mesmo que contra todas as probabilidades e até contra, digamos, o perfil do personagem, James Bond encontrava sua alma gêmea nas formas da forçadamente cativante Madeleine Swann (Lea Seydoux), abandonava o MI6 e partia em direção a um improvável final feliz de uma vida em família. Nesta nova produção, com intenções ainda mais contundentes de ser o capítulo derradeiro da Fase Daniel Craig, aquela pasmaceira familiar é descartada já no prólogo, uma longa cena de ação e perseguição na Itália (onde estaria o túmulo de Vesper, a bondgirl nº 1, morta em “Cassino Royale”), na qual Bond termina sentindo na pele os dissabores de se confiar demais e ser traído –ele deixa Madeleine (que julga tê-lo traído) numa estação de trem e garante à ela que nunca mais saberá dele. Entram os créditos iniciais, característicos e sensacionais desde o primeiro filme, com Sean Connery, e então “Sem Tempo Para Morrer” começa de verdade, com seu roteiro correndo contra o prejuízo e criando expedientes hábeis (uns muito bem bolados, outros nem tanto) para tentar trazer James Bond de volta ao seu status quo do qual algumas escolhas equivocadas do filme anterior ameaçaram removê-lo. Assim, passam-se cinco anos (!) e Bond, não mais um agente a serviço secreto de Vossa Majestade, é recrutado não pelo MI6, mas por seu grande amigo Felix Leiter (Jeffrey Wright), da CIA, que pede a Bond um favor: Recapturar um cientista russo sem escrúpulos, criador de um vírus a pedido do próprio MI6, que foi tirado de um laboratório secreto por um grupo obscuro que aparentemente é a Spectre.

A inusitada missão leva Bond à Cuba, na qual tem por ajudante a entusiasmada e divertida Paloma (a maravilhosa Ana de Armas, estabelecendo com Graig uma parceria um pouco diferente da que fizeram em “Entre Facas e Segredos”), talvez, a mais interessante e vívida personagem de todo o filme. Uma pena ela aparecer por tão pouco tempo...

O roteiro de “Sem Tempo Para Morrer” –assinado pelo diretor Cary Joji Fukunaga, Phoebe Waller-Bridge, Scott Z. Burns, Neal Purvis e Robert Wade, os dois últimos, roteiristas que, entre uma e outra colaboração, seguiram firme na franquia 007 desde os tempos de Pierce Brosnan, ou seja, conhecem (ou deveriam conhecer) toda a mitologia do personagem de cabo a rabo –lança mão de subterfúgios bastante sofisticados e expedientes objetivos de filmes de espionagem para desvencilhar-se da irrelevância e fazer-se surpreendente numa época em que expectadores não se surpreendem nem com reviravoltas-surpresas no melhor estilo M. Night Shyamalan. Não só isso, a produção também encara o desafio –inerente à todo filme de James Bond desde o fim dos anos 1980 –de fazer um personagem nascido das circunstâncias da Guerra Fria soar pertinente na atualidade, além de procurar se impor como uma válida obra cinematográfica tendo como objeto de comparação o fabuloso “007-Operação Skyfall”, com grande unanimidade tido como o melhor filme de Bond feito até hoje, e buscando fugir da proximidade qualitativa de obras que envergonharam a série, como “007 Contra O Foguete da Morte”.

São muitos, portanto, os desafios com os quais o diretor Cary Joji Fukunaga (da primeira temporada da série “True Detective”) se defronta aqui, e embora a crítica tenha sido muito rabugenta com seu trabalho (em certos quesitos até com alguma razão), ele consegue entregar um entretenimento válido, distante da sensação de desperdício que infelizmente contaminou “007 Contra Spectre”, ainda que longe de igualar a qualidade dos títulos mais honoráveis. Mesmo assim, “Sem Tempo Para Morrer” segue envolvente, eletrizante e reconhecível como um genuíno filme de 007.

Curioso, entretanto, é quando descobrimos, ao lado do próprio James Bond, que ele não é mais 007 (?!); seu codinome foi transferido, quando deixou o MI6, para outra agente, interpretada por Lashana Lynch (de “Capitã Marvel”). Contudo, será ao lado dela que Bond terá de trabalhar quando descobrir que, ao contrário do que acreditava, os planos malignos em gestação não são da Spectre (cujo líder, Blofeld, vivido por Christoph Waltz, está em uma prisão de segurança máxima), e sim de outro vilão megalomaníaco (vivido, por sua vez, por Rami Malek, recém-saído do Oscar de Melhor Ator por “Bohemian Rapsody”) dotado de planos intrincados que reintroduzem Madeleine Swann (personagem melhor desenvolvida aqui que no filme anterior) de volta à vida de Bond.

É fácil enxergar os elementos de “Sem Tempo Para Morrer” que desagradaram os puristas – a representatividade (um fator sempre redundante e secundário em encarnações anteriores do personagem) é poderosamente exercida no roteiro com a adição de uma mulher negra que detêm, durante boa parte do tempo, o título de 007 que antes pertencia ao herói, além das lembranças constantes da presumida irrelevância de James Bond, seja como um truculento agente de campo numa época dominada por tecnologia, sejam suas atitudes rotuladas machistas, e tudo isso sem contar a manobra final que certamente deixou descontente a maioria esmagadora de sua legião de fãs. Ainda assim, há que se notar também as qualidades do filme: A Fase Daniel Craig como um todo –e alguns de seus exemplares com mais evidência –foi a primeira a aproveitar integralmente todo o potencial cinematográfico que se poderia atingir nas obras de James Bond, não obstante o brilho nostálgico e a pulsante inovação da Fase Sean Connery, o divertimento irrestrito, ainda que ocasionalmente tolo, da Fase Roger Moore, a seriedade genérica da Fase TimothyDalton e o sopro de renovação técnica e artística da Fase Pierce Brosnan. Aqui, Cary Joji Fukunaga reitera muito do que funcionou antes, para potencializar o grande intérprete que Bond encontrou em Daniel Craig (embora sempre tenha sido notória a relação ‘amor e ódio’ que o ator sempre alimentou pelo personagem), cercando-o de formidáveis reafirmações da mitologia à qual pertenceu. É uma despedida digna, exuberante e adequada, imperfeita nas suas escolhas, razoável em relação à época a que pertence, enunciando certamente um recomeço no futuro, com outro ator, outra abordagem, e outra tentativa de se equiparar a tudo que veio antes.

Talvez o maior desafio seja encontrar um ator que se imponha no papel com a eficiência instintiva que Daniel Craig soube depositar em toda sua bela, ainda que oscilante, trajetória de cinco filmes.

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