No papel, a trama de “Calmaria” até que parece instigante e promissora –e certamente se deve a isso o bom elenco que o projeto conseguiu reunir –no entanto, em sua execução, o filme de Steven Knight (roteirista de “Coisas Belas e Sujas”) é falho e equivocado. Seu protagonista é um certo Baker Dill (vivido com inicial apatia por Matthew McConaghey), homem em cuja vida, nada é muito certo: Não é muita certa sua ocupação (de levar à bordo de seu barco, em passeios no alto-mar, turistas pagantes) uma vez que, já na cena que abre o filme, Baker despreza seus clientes para concentrar-se no que parece ser uma obsessão –pescar um imenso e lendário atum que lhe escapa sempre que está prestes a capturar. Não são muito certos seus relacionamentos, como a amizade pouco recíproca do indulgente Duke (Djimon Hounsou, de “Shazam!”) ou o convulsivo sexo casual que mantém com a ainda mais indulgente Constance (Diane Lane, desperdiçada). Nem é muito certa sua vontade de permanecer naquela longínqua ilha de Plymouth, onde todos vivem a trabalhar para depois encher a cara no bar local. Para Baker Dill, não é muito certo nem mesmo quem ele é: Outrora, ao que tudo indica, ele se chamou John Mason, e desistiu de tudo após um traumático período na Guerra do Afeganistão.
De tudo, exceto de seu filho, Patrick (Rafael
Sayegh) com quem, mesmo estando em algum outro lugar e há anos sem se verem,
Baker mantém uma conexão que parece sobrenatural. Essa estranha rotina muda com
a chegada de Karen (Anne Hathaway, extremamente deslocada), socialite loira que
surpreende a muitos revelando-se ser ex-esposa de Baker. Ela precisa do
ex-marido para um serviço improvável –seu atual marido Frank (Jason Clarke) é
um homem violento que a ameaça e ao seu filho. Para livrar-se dele –que
aparecerá por Plymouth nos próximos dias interessado num providencial passeio à
barco –Karen pagará 10 milhões de dólares para que Baker deixe-o afogar-se no
oceano.
A dúvida está instalada no pensamento do
personagem principal e um certo suspense, na narrativa. Contudo, embora
“Calmaria” –ou “Serenity”, seu título original que dá nome ao barco do
protagonista –traga todos os elementos de um filme noir com ambientação
caribenha –a femme fatale trazendo problemas ao calejado herói; o assassinato
encomendado com ares de um mistério ainda por se resolver; o vilão criminoso,
inescrupuloso e perigoso como manda o figurino –ele não é um de fato: Lá pelas
tantas, “Calmaria” se sai com uma espécie de reviravolta que coloca todas as
coisas de pernas pro ar e transforma por completo a percepção (e o próprio
gênero) do filme que vínhamos assistindo. É uma guinada similar àquela
presente, num dado momento, em “Vanilla Sky”, ou em “Clube da Luta” –com a
grave diferença de que nesses filmes citados, tal guinada funciona...
Dirigindo seu próprio roteiro, Steven Knight demonstra apreço fora do normal
por obras que levam às últimas consequências o conceito em que nada é o que
parece ser, em especial os trabalhos assinados por Christopher Nolan, como
“Amnésia” e “A Origem” –e não é à toa, portanto, que seus protagonistas sejam
McConaghey e Hathaway, reunidos também por Nolan em “Interestelar” –porém, ele
deixa seu fascínio como expectador confundir sua perspicácia como realizador e
constrói um filme de justificativas incertas, de cenas realizadas para soarem
intrigantes mas que resultam apenas idiotas, e de personagens que, devido à
fraca direção, nunca dizem em suas posturas de fato à que vieram.
E, a partir daqui, leitor, a resenha irá abordar abertamente
as surpresas do filme, portanto, considere-se aviso de spoilers!
Talvez,
o grande lapso de “Calmaria”, seja o fato de que a sua grande reviravolta
surpresa pode ser antecipada a partir de um determinado ponto pelo expectador
que estiver mais atento –uma falha grave num filme cuja proposta central é
mostrar-se surpreendente e inesperado. Dentro do enredo que norteia “Calmaria”,
todos os personagens (sobretudo Baker) são integrantes de um jogo de videogame
projetado pelo menino Patrick em sua solidão. Ele coloca seu pai –morto em
combate –como personagem central (e o mote do jogo é tentar pescar o atum, daí
a sua obsessão) e, por isso, todos os demais personagens em volta dele se
mostram obsequiosos, solícitos aos seus interesses e subservientes aos seus
objetivos, mesmo que ele nunca forneça motivos para que se comportem assim. A
aparição de Karen significa, assim, que as aflições da vida doméstica de
Patrick –na qual o padrasto lhe hostiliza –começam a interferir na harmonia
idílica daquele mundo paradisíaco que ele criou. As discrepâncias dessa obra,
contudo, falam muito alto; por exemplo: Acaba soando grosseira a constatação de
que o jovem, uma vez sendo o idealizador de toda a narrativa que se sucede em
Plymouth, imaginou, ele próprio, uma transa entre seu pai e sua mãe, na noite
anterior ao dia fatídico (!).
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