segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Calmaria


 No papel, a trama de “Calmaria” até que parece instigante e promissora –e certamente se deve a isso o bom elenco que o projeto conseguiu reunir –no entanto, em sua execução, o filme de Steven Knight (roteirista de “Coisas Belas e Sujas”) é falho e equivocado. Seu protagonista é um certo Baker Dill (vivido com inicial apatia por Matthew McConaghey), homem em cuja vida, nada é muito certo: Não é muita certa sua ocupação (de levar à bordo de seu barco, em passeios no alto-mar, turistas pagantes) uma vez que, já na cena que abre o filme, Baker despreza seus clientes para concentrar-se no que parece ser uma obsessão –pescar um imenso e lendário atum que lhe escapa sempre que está prestes a capturar. Não são muito certos seus relacionamentos, como a amizade pouco recíproca do indulgente Duke (Djimon Hounsou, de “Shazam!”) ou o convulsivo sexo casual que mantém com a ainda mais indulgente Constance (Diane Lane, desperdiçada). Nem é muito certa sua vontade de permanecer naquela longínqua ilha de Plymouth, onde todos vivem a trabalhar para depois encher a cara no bar local. Para Baker Dill, não é muito certo nem mesmo quem ele é: Outrora, ao que tudo indica, ele se chamou John Mason, e desistiu de tudo após um traumático período na Guerra do Afeganistão.

De tudo, exceto de seu filho, Patrick (Rafael Sayegh) com quem, mesmo estando em algum outro lugar e há anos sem se verem, Baker mantém uma conexão que parece sobrenatural. Essa estranha rotina muda com a chegada de Karen (Anne Hathaway, extremamente deslocada), socialite loira que surpreende a muitos revelando-se ser ex-esposa de Baker. Ela precisa do ex-marido para um serviço improvável –seu atual marido Frank (Jason Clarke) é um homem violento que a ameaça e ao seu filho. Para livrar-se dele –que aparecerá por Plymouth nos próximos dias interessado num providencial passeio à barco –Karen pagará 10 milhões de dólares para que Baker deixe-o afogar-se no oceano.

A dúvida está instalada no pensamento do personagem principal e um certo suspense, na narrativa. Contudo, embora “Calmaria” –ou “Serenity”, seu título original que dá nome ao barco do protagonista –traga todos os elementos de um filme noir com ambientação caribenha –a femme fatale trazendo problemas ao calejado herói; o assassinato encomendado com ares de um mistério ainda por se resolver; o vilão criminoso, inescrupuloso e perigoso como manda o figurino –ele não é um de fato: Lá pelas tantas, “Calmaria” se sai com uma espécie de reviravolta que coloca todas as coisas de pernas pro ar e transforma por completo a percepção (e o próprio gênero) do filme que vínhamos assistindo. É uma guinada similar àquela presente, num dado momento, em “Vanilla Sky”, ou em “Clube da Luta” –com a grave diferença de que nesses filmes citados, tal guinada funciona...

Dirigindo seu próprio roteiro,  Steven Knight demonstra apreço fora do normal por obras que levam às últimas consequências o conceito em que nada é o que parece ser, em especial os trabalhos assinados por Christopher Nolan, como “Amnésia” e “A Origem” –e não é à toa, portanto, que seus protagonistas sejam McConaghey e Hathaway, reunidos também por Nolan em “Interestelar” –porém, ele deixa seu fascínio como expectador confundir sua perspicácia como realizador e constrói um filme de justificativas incertas, de cenas realizadas para soarem intrigantes mas que resultam apenas idiotas, e de personagens que, devido à fraca direção, nunca dizem em suas posturas de fato à que vieram.

E, a partir daqui, leitor, a resenha irá abordar abertamente as surpresas do filme, portanto, considere-se aviso de spoilers!

 Talvez, o grande lapso de “Calmaria”, seja o fato de que a sua grande reviravolta surpresa pode ser antecipada a partir de um determinado ponto pelo expectador que estiver mais atento –uma falha grave num filme cuja proposta central é mostrar-se surpreendente e inesperado. Dentro do enredo que norteia “Calmaria”, todos os personagens (sobretudo Baker) são integrantes de um jogo de videogame projetado pelo menino Patrick em sua solidão. Ele coloca seu pai –morto em combate –como personagem central (e o mote do jogo é tentar pescar o atum, daí a sua obsessão) e, por isso, todos os demais personagens em volta dele se mostram obsequiosos, solícitos aos seus interesses e subservientes aos seus objetivos, mesmo que ele nunca forneça motivos para que se comportem assim. A aparição de Karen significa, assim, que as aflições da vida doméstica de Patrick –na qual o padrasto lhe hostiliza –começam a interferir na harmonia idílica daquele mundo paradisíaco que ele criou. As discrepâncias dessa obra, contudo, falam muito alto; por exemplo: Acaba soando grosseira a constatação de que o jovem, uma vez sendo o idealizador de toda a narrativa que se sucede em Plymouth, imaginou, ele próprio, uma transa entre seu pai e sua mãe, na noite anterior ao dia fatídico (!).

Com essa estranha e mal-costurada mescla de gêneros que se pretende inesperada (mas, é só estranha mesmo), Steven Knight esperava urgir uma obra nos moldes dos trabalhos de Nolan, entretanto, terminou criando algo que se aproxima mais da irregularidade e da esquisitice do inconstante “O Segredo da Cabana”, de Drew Goddard.

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