domingo, 6 de abril de 2025

A História do Cinema Negro nos EUA


 Realizado pelo crítico, radialista, diretor e roteirista Elvis Mitchell, este documentário lançado pela Netflix é um registro abrangente e ocasionalmente pessoal do surgimento da blaxploitation no cinema norte-americano, cuja produção encontrou seu apogeu durante a prolífica década de 1970.

Em sua narração em off, Mitchell avalia as décadas pregressas do cinema hollywoodiano, analisando o estranho e anacrônico tratamento dado aos negros, com os valores, às vezes até bem-intencionados, transfigurados pelo preconceito institucionalizado (caso do clássico de 1915 “O Nascimento de Uma Nação”, da superprodução de 1939 “E O Vento Levou”, apontada hoje como uma problematização da relação entre escravos e senhores, e do infame “A Canção do Sul”), e as ofensivas caracterizações sofridas por toda essa comunidade nas primeiras décadas em que o cinema existiu no Século XX (com o absurdo de atores e atrizes caucasianos pintados para ‘interpretarem’ personagens afro-descendentes em inúmeras produções). Ele cita a estóica e pioneira tentativa do astro, ator e cantor Harry Belafonte, ainda nos anos 1950, de tentar assumir uma identidade de representatividade digna para sua comunidade em diversos projetos (tais como “O Diabo, A Carne e O Mundo” e “Homens Em Fúria”) –esforço que, em grande medida emperrou sua carreira –em oposição à Sidney Poitier (o primeiro ator negro a vencer o Oscar, em 1964), e sua receptividade junto à Hollywood, muitas vezes assumindo estereótipos; ainda assim, Poitier tornou-se um astro por meio de obras como “Uma Voz Nas Sombras” (aquele que lhe premiou com o Oscar), “Adivinhe Quem Vem Para Jantar”, “Ao Mestre Com Carinho”, “No Calor da Noite” e “Acorrentados”.

Entretanto, na iminência dos anos 1970, com o enfraquecimento do Código Hays (que estabelecia censura de idade aos filmes lançados em cinemas) e o despontar de um cinema mais autoral, voltado para as mazelas de cunho social, diretores alternativos e marginalizados na indústria encontraram um meio para equiparar suas produções de baixo orçamento com o apelo popular das produções de estúdio, nascendo assim o exploitation –um subgênero que definia os filmes que lançavam mão de cenas e situações com inadvertida dose de sexo e violência que os filmes de estúdio não tinham liberdade para exibir. Ao exploitation logo seguiu-se inúmeras variações que exploravam (daí o termo!) as vulgares possibilidades de um cinema sem amarras, é no blaxploitation que o documentário de Elvis Mitchell se concentra.

Ele começa citando o seminal “A Noite dos Mortos-Vivos”, de George Romero, que em 1968, atreveu-se a lançar mão de um protagonista negro, em meio à coadjuvantes brancos, pela primeira vez impondo-se como um personagem forte, dotado de liderança, e sem qualquer vitimismo –o desfecho amargo, revoltante e absolutamente condizente com a realidade deste personagem ao final do filme deixou bem claro não apenas a visão desdenhosa dos brancos sobre os negros na sociedade, como também a indignação crescente, a exigir novas empreitadas rumo à um protagonismo negro que, só então, o cinema começava a descobrir.

O homem branco estava perdendo a transparência com a qual era visto como herói (e a sociedade, provavelmente, perdendo a ingenuidade com a qual comprava essa ideia) sendo retratado, nos filmes subsequentes, mais como um anti-herói. Dessa forma, surgiram as primeiras produções dentro do blaxploitation como o marcante “Rififi No Harlem”, de 1970, cuja inédita manobra mercadológica –de lançar a aclamada trilha sonora antes do longa-metragem –proporcionou uma insuspeita campanha de marketing que o tornou um sucesso de bilheteria. À ele seguiu-se, no ano seguinte, o ainda mais bem-sucedido “Shaft” (vencedor do Oscar de Melhor Canção Original) e o apoteótico “Sweet Sweetback Baadasssss Song”, de Melvin Van Peebles.

Estavam estabelecidas as bases que definiriam o blaxploitation pela próxima década, trazendo ao seu público, já em 1972, uma variação dos já prestigiados filmes destinados aos brancos –houveram obras como “Superfly” (uma versão de “O Poderoso Chefão”), “Blácula” (com o astro William Marshall numa versão afro do “Drácula” de Bela Lugosi) e “Um Por Deus, Outro Pelo Diabo” (uma versão de “Butch Cassidy & Sundance Kid”) que trazia uma parceria entre Harry Belafonte e Sidney Poitier, como aliás atestam o vastos depoimentos que o documentário traz, como Laurence Fishburne e Samuel L. Jackson, observando suas impressões daquele período (quando ainda eram bem jovens), e outras estrelas de ontem (como Vonetta McGee, Carol Speed e Whoopy Goldberg) e de hoje (como Zendaya), apontando a grande importância (na cerimônia do Oscar de 1973) das indicações, na categoria de Melhor Atriz, de Diana Ross (por “O Ocaso de Uma Estrela”) e de Cicely Tyson (por “Lágrimas de Esperança”), duas obras blaxploitation –a vencedora daquele ano foi Liza Minelli, por “Cabaret”.

O filme pontua o sucesso dos rostos mais icônicos desse movimento, como a maravilhosa Pam Grier, estrela de aproximadamente sete filmes entre 1973 e 1975, incluindo os sucessos “Coffy”, “Foxy Brown” e “Friday Foster” (este, uma pioneira adaptação cinematográfica de histórias em quadrinhos).

Houveram ainda obras como “The Mack”, ainda em 1973 (também aproveitando a manobra de lançar antecipadamente o álbum de sua trilha sonora, aqui assinada pela lendária gravadora Motown), “Cooley High” (uma variação de “Loucuras de Verão”), em 1975, e também a corrosiva animação para adultos “Coonskin”, de Ralph Bakshi, que unia animação convencional e rotoscopia formulada para traçar um painel satírico, caricato, social e sexual da forma deturpada com que os negros eram tratados e enxergados na sociedade e na indústria.

Em 1977, quando do lançamento de “Os Embalos de Sábado À Noite”, Mitchell observa como Hollywood já havia começado à incorporar o estilo, as caracterizações, a narrativa despojada e a linguagem da blaxploitation, realizando obras dentro dessas definições voltadas para o público caucasiano e estreladas por caucasianos –o astro John Travolta que, no retrato indicado ao Oscar de seu personagem, Tony Manero, agrega vários traços e posturas difundidos exclusivamente pelos magníficos protagonistas da blaxploitation como Ron O’ Neal, Isaac Hayes, Billy Dee Williams, Jim Brown e Richard Roundtree.

Entre algumas obras ainda pertinentes e até hoje referenciadas (como o extraordinariamente influente “O Matador de Ovelhas”, de Charles Burnett), o blaxploitation encontrou seu declínio no fim dos anos 1970, mais especificamente em 1978, com a suntuosa produção de “O Mágico Inesquecível”, de Sidney Lumet, uma versão do clássico “O Mágico de Oz” que trazia em seu elenco Diana Ross, Michael Jackson, Nipsey Russell e Richard Pryor, e acabou mostrando-se incapaz de recuperar, nas bilheterias, o seu gordo orçamento de 24 milhões de dólares. A chegada dos anos 1980, trouxe de volta à Hollywood, a percepção de que seus protagonistas brancos poderiam voltar a interpretar heróis, como “Rambo” (com Sylvester Stallone), “O Céu Pode Esperar” (com Warren Beatty) ou “Hopper” (com Burt Reynolds).

Valioso registro histórico e elaborado painel de um período, o documentário de Elvis Mitchell acima de tudo ressalta a imensa importância social e cultural no movimento da Blaxploitation e de como o cinema norte-americano como um todo deve, e muito, àquelas realizações e àqueles realizadores.

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