sábado, 13 de setembro de 2025

Corra Que A Polícia Vem Aí!


 Numa época em que já era improvável realizar uma comédia besteirol e abilolada por si só, o diretor Akiva Schaffer (membro do grupo de comediantes The Lonely Island) também resgatou uma cinessérie que parecia extinta –a aloprada saga cômica-policial do Detetive Frank Drebin que, no fim dos anos 1980 e início dos 1990, representou o supra-sumo da comédia norte-americana produzida no período. Feita nos mesmos moldes insanos de “Apertem Os Cintos, O Piloto Sumiu!” uma década antes, e estrelada pelo impagável Leslie Nilsen (cujo entendimento da comédia o levava a ser o personagem mais sério em cena e, paradoxalmente, o mais hilariante), essa produção foi compreendida na íntegra pelos novos realizadores na hora de ganhar uma nova roupagem. Eles escalaram, para o papel do novo protagonista, filho do personagem anterior, Frank Drebin Jr, o incontornavelmente sério Liam Neeson (que, com sua carranca, se torna uma improvável fonte constante de graça do início ao fim) e pontuaram o incomum roteiro (pois qualquer enredo que traga algum humor hoje em dia É incomum) com piadas relacionadas aos novos tempos, aos expedientes condicionados que o gênero sempre ostentou, e imbuídas das bobagens usuais de sempre.

O resultado é um filme bobo, destemido, notável e ocasionalmente surpreendente.

Membro da polícia de Los Angeles, Frank Drebin jr. (Neeson), é alguém que tem algo a provar –seu pai havia sido, no passado, uma lenda na força policial. Contudo, para aqueles conhecedores das circunstâncias dos filmes originais, Jr. puxou o pai em tudo e por tudo: Ao redor de Frank, tudo se convertia em caos por conta do talento sobrehumano que ele tinha para deixar confusões acontecerem sem cessar. E Jr. é exatamente assim; crê piamente estar fazendo seu trabalho investigativo com a maior seriedade possível, mas só está equilibrando uma trapalhada atrás da outra.

Um intrigante caso de assassinato cai em suas mãos quando um funcionário de uma empresa milionária fabricante de carros elétricos surge vítima aparentemente de suicídio. A irmã do falecido, Miss Beth Davenport (Pamela Anderson, em estado de graça após a indicação ao Globo de Ouro por “The Last Showgirl”), no entanto, sabe que o irmão não se matou –ele foi, sim, assassinado. E os objetivos disso escondem uma conspiração que, por enquanto, permanece um mistério.

É Fran Jr., mais por destrambelhamento do que por instinto policial de fato, quem irá percorrer a trilha das pistas até o magnata Richard Cane (Danny Huston, num papel que começa a lhe parecer quase inevitável) e ao plano maquiavélico, digno de um vilão de James Bond, que ele engendra.

No decurso dessa investigação e de todos os reflexos involuntários que o filme executa dentro do gênero que almeja parodiar (os filmes policiais norte-americanos e, aqui e ali, os filmes noir dos anos 1950), as piadinhas (sejam as infames ou as genuinamente engraçadas) vão se acumulando, como aquela recorrente, na qual os policiais nunca ficam sem um copo cheio de café para beber, o gracejo em torno do fato de Liam Neeson partir ao meio todo o celular no qual está falando (uma brincadeira com sua persona truculenta de herói de ação), ou a absurda cena do início, na qual o enorme Liam Neeson frustra um sequestro se disfarçando de inocente garotinha (!). Neeson, por sinal, esbanja uma química formidável com sua parceira de cena, Pamela Anderson, e há um empenho nítido e louvável da parte do elenco, da direção e do roteiro em fazer o humor do filme funcionar –e embora os momentos cômicos encontrem um ou outro empecilho devido à pouco habituada plateia de hoje, esse esforço persiste até o final.

terça-feira, 9 de setembro de 2025

The White Lotus - 1ª Temporada


 Norte-americanos têm uma relação estranha com a comédia. Trata-se de um gênero trabalhado de forma muito peculiar, conforme o autor. Transformada numa série de antologia por conta de seu sucesso (o que converte estes sete primeiros episódios na primeira temporada, sendo já confirmada até a quarta, cada uma ambientada num local completamente diferente e com outro elenco), a minissérie “The White Lotus” e seu autor, o roteirista e diretor Mike White, fazem com que a comédia realizada aqui traga quantias abundantes de sutileza e um humor negro que, em seus melhores momentos, se revela refinado, tudo baseado num roteiro meticuloso na construção espirituosa de situações complexas, indicativas da dualidade moral humana, e amparado num elenco diversificado e talentoso.

A White Lotus do título, é o nome de um hotel resort que, ao menos, nesta primeira temporada, se localiza no Hawaí. A cena inicial se dá num aeroporto, onde o almofadinha Shane Patton (Jake Lacy, de “Armas Na Mesa”, num personagem feito sob medida para ser odioso) voltando do que ele afirma ser sua lua-de-mel aguarda o embarque de um caixão. Quem se encontra morto no caixão? Seria sua bela noiva Rachel (Alexandra Daddario)? Se não, por que ela não está com ele? Uma vez plantadas essas dúvidas, a série regressa uma semana no tempo, para mostrar a chegada dos personagens principais ao White Lotus: A Família Mossbacher composta pelo pai (Steve Zahn, de “Irresistível Paixão”), a mãe (Connie Britton, de “Nosso Tipo de Mulher”) e os filhos Quinn (Fred Henchinger, de “Gladiador II”) e Olivia (Sydney Sweeney, antes do estrelato e da série “Euphoria”), que levou a melhor amiga Paula (Brittany O’Grady); os recém-casados Shane e Rachel, já mencionados; e a viúva ricaça e sem-noção Tanya McQuoid (Jennifer Coolidge, de “American Pie”). Cada um desses turistas americanos tem suas próprias mazelas pessoais –os Mossbacher disfarçam seu casamento em crise com atenção desmesurada às banalidades, enquanto que a filha Olivia estabelece com Paula uma dinâmica na qual tenta tomar (ou inferiorizar) tudo que ela tem, inclusive, o súbito relacionamento com Kai (Scott Kekumano), um dos empregados do hotel; Shane, no instante em que pisa no hotel, lança-se numa cruzada imatura para tentar obter, através de seu privilégio de menino rico, a suíte que bem desejar, enquanto mostra gradualmente à aflita Rachel a futilidade abissal de seu comportamento; enquanto que Tanya, ao levar as cinzas da mãe para serem jogadas no mar, vai arrebanhando para si vários funcionários do hotel (em especial, a solícita Belinda), convertidos em reféns de sua carência –e cada um ostenta também sua predisposição ao desmazelo social acarretado pelo hedonismo da classe alta. Os burgueses são imaturos, mimados e vazios, e por isso, sobra ao gerente do hotel, Armond (Murray Bartlett, o protagonista real da série), a tarefa nada lisonjeira de tentar administrar tantas vontades insaciáveis, tantos egos necessitados de paparicação.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Amsterdam


 Escrito e dirigido pelo mesmo David O’Russell que surpreendeu público e crítica com “O Lado Bom da Vida” e “Trapaça”, “Amsterdam” passou despercebido quando foi lançado em 2022. A intriga verborrágica, mirabolante e intrincada que ele descortina (ainda que ampara em fatos reais, a chamada Conspiração Empresarial de 1933) não caiu no gosto dos expectadores, e a condução de O’Russell –como sempre, inclinada ao fascínio por tipos disfuncionais e por uma sistemática estranheza –não ajudou a tornar mais apetecível uma obra que, em sua indefinição, parece não pertencer a gênero nenhum: Durante suas mais de duas horas de duração, “Amsterdam” reúne elementos de film noir, suspense conspiratório, drama, comédia de humor negro e thriller político, tudo numa roupagem desigual que remete à década de 1930.

O enredo cheio de melindres gira em torno de três grandes amigos: Os soldados Burt Berendsen (Christian Bale), Harold Woodman (John David Washington, de “Resistência”) e a enfermeira Valerie (Margot Robbie). Em meados de 1918, Burt e Woodman se conheceram no front da Primeira Guerra Mundial e logo foram despachados para o hospital em que Valerie servia. A amizade foi instantânea –bem como o romance entre Harold e Valerie –e os três logo fugiram para Amsterdam a fim de viver um sonho até o limite do tolerável.

Entretanto, Burt, casado com a abastada Beatrice Vandenheuvel (Andrea Riseborough), precisou voltar para a América, trazendo Harold à reboque. Quinze anos depois, os dois trabalham numa clínica médica de quinta categoria para soldados veteranos em Nova York –Burt como médico-cirurgião, Harold como advogado –quando são procurados por Elizabeth Meekins (a cantora Taylor Swift), certa de que seu pai, o Senador Meekins, não morreu de causas naturais ao voltar de uma viagem à Europa.

Durante a autópsia, perpetrada por Burt e pela enfermeira Irma St. Clair (Zoe Saldaña), eles descobrem que o Senador foi envenenado e, quando dão por si, são tragados para dentro de um furacão: Na sequência, Elizabeth é assassinada, a culpa recai sobre Burt e Harold que logo se tornam os principais suspeitos aos olhos da polícia –personificada nos paspalhos personagens de Matthias Schoenaerts e Alessandro Nivola. Ao fugirem, Burt e Harold dão início à sua própria investigação a fim de limpar seus nomes, quando reencontram novamente Valerie, e vão descobrindo uma trilha de pistas que irá levá-los até um influente político de Washington (Robert De Niro) e, por fim, à uma terrível verdade acerca de um mal inominável que começa a despontar em certos governos totalitários da Europa, como a Itália e a Alemanha, E acredite, essa é só a ponta do iceberg!

Uma sinopse descrita em características normais não dá conta das idas e vindas, da deliberada excentricidade e da atmosfera de incomum ironia que persiste durante todo o tempo no filme de O’Russell, e embora esse elemento seja certamente grande parte de seu charme e diferenciação, ele é também seu calcanhar de Aquiles –o diretor O’Russell sempre foi muito afeito à esquisitices pontuais em suas narrativas. Em alguns casos, esse gosto curioso e apurado resultou em obras que foram capazes de contornar o estranhamento para surpreender ou até emocionar seu público; em outros –sobretudo seus trabalhos de início de carreira como a bizarra comédia romântica “A Mão do Desejo”, o inconformista “Flying With Disaster” e o filme sobre e para loucos (!) “Huckabees” –o produto final acabava sendo tão distante das convenções que simplesmente não se revelava palatável ao público. É esse o caso, aqui, de “Amsterdam”.

Não é que não seja um bom trabalho (ele é), não é que seu elenco não esteja bem (Christian Bale, pra variar, se mostra excelente, e os nomes estelares da produção só mostram o quanto a reputação de O’Russell é positiva), não é que o roteiro seja ruim (muito pelo contrário, ele reúne com certa maestria elementos díspares que poderiam, com menos talento, jamais surgirem tão bem ordenados numa narrativa) e nem que a direção de O’Russell deixe a desejar (seu manejo das inúmeras facetas de gêneros que se presta a abordar é extremamente elegante e inspirado,e nunca soa forçado ou cansativo), mas o fato é que “Amsterdam”, na sua originalidade tão contundente, provavelmente, está condenado a ser um cult-movie, uma obra incompreendida que, nos anos ou décadas por vir, será redescoberta por cinéfilos e admiradores que o enaltecerão, observando nele as qualidades que não foram notadas na sua época.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Uma Equipe Muito Especial


 É até inconcebível hoje ver Tom Hanks como coadjuvante das não tão estelares Geena Davis e Lori Petty (de “Caçadores de Emoção”), menos ainda quando percebemos que ele é pouco mais que o alívio cômico do filme, mas esse é só um dos indicativos que mostram que “Uma Equipe Muito Especial” –ou "A League of Their Own", seu título original –pertence a outros tempos, afinal, Geena Davis havia acabado de fazer “Thelma & Louise” (e de ser indicada ao Oscar por isso!) enquanto que Madonna (também presente no elenco) estava recém-saída de “Dick Tracy”.

Dirigido pela saudosa Penny Marshall (que havia dirigido Hanks em “Quero Ser Grande”), o filme é consequência direta da indicação ao Oscar de Melhor Filme para “Tempo de Despertar”, em 1990, o que deu à Penny a capacidade para viabilizar o projeto que quisesse.

E o projeto que ela quis diz muito de suas inclinações morais e pessoais como contadora de histórias: A trajetória dos membros da Liga Americana de Beisebol Profissional Feminino, a AAGPBL, fundada por Philip K. Wrigley em 1943 (numa forma de não interromper os campeonatos de beisebol, tão amados pelo público norte-americano, e suprir a ausência de jogadores masculinos que estavam todos lutando na Segunda Guerra Mundial) e mantida até 1954. No filme, o fundador da Liga Feminina chama-se Walter Harvey (e é interpretado por Garry Marshall, diretor de “Uma Linda Mulher” e irmão da diretora Penny), personagem fictício criado a partir do próprio Philip K. Wrigley –é ele quem escala Ira Lowenstein (David Strathairn) para o trabalho de Relações Públicas, e chama o olheiro Ernie Capadino (Jon Lovitz) para percorrer os EUA atrás de habilidosas jogadoras.

Os testes logo revelam talentos promissores no beisebol comos as irmãs Dottie Hinson (Geena) e Kit Keller (Lori), a batedora bidestra Maria Hooch (Megan Cavanagh), a meia-campista e ex-dançarina Mae Mordabito (Madonna), a terceira defensora Doris Murphy (Rosie O’Donell), e outras. Todas seguem, de suas moradas (Dottie e Kit eram do Oregon; enquanto Mae e Doris eram de Nova York) para Chicago e, de lá, para as turnês de jogos que compõem a temporada 1943.

O personagem de Hanks é o técnico rabugento, decadente e alcóolatra Jimmy Dugan, que encara com inicial relutância a tarefa de dirigir o recém-formado time Rockford Peaches, onde todas as protagonista jogam. Pouco a pouco, o esmero e o talento das jogadoras vai não apenas conquistando a aprovação do técnico Dugan como também obtendo inesperado sucesso junto ao público que passa a acompanhar de modo cada vez mais numeroso as disputas nos gramados.

É curiosa a questão que o filme levanta em seu clímax: Na partida final, quando o Rockford Peaches encara o seu rival Racine Belles (time para o qual, de um ponto em diante da trama a descontente e desiludida Kit vai jogar, deixando a irmã Dottie no time adversário), a jogada decisiva do jogo envolve justamente as duas irmãs, Dottie e Kit, e sua constante rivalidade –um mote que atravessa todo o filme, justaposto também com o grande amor que as une. Dottie era sempre a melhor, a mais talentosa, a mais hábil e, como mulher, não tinha dificuldades em sobressair-se como a mais bela e a mais elegante, características que só ressaltavam a insegurança e a vulnerabilidade de Kit. Nesse acerto de contas final entre as duas é apenas sugerido na narrativa que, talvez, tenha sido Dottie quem terminou deixando que sua irmã (e, por consequência, o time dela) vencesse aquela partida.

Amparado em diversos expedientes básicos dos filmes esportivos –desde o técnico implicante até a gradual aceitação do time pelo público, passando pelos conflitos ora engraçados, ora dramáticos, e culminando no emocionante clímax da partida final –"A League of Their Own" traz esses elementos tão bem dispostos e conduzidos pela diretora Marshall que se torna impossível não se emocionar ou não torcer pelas personagens, em sua busca por aceitação e reconhecimento.

sábado, 30 de agosto de 2025

Tubarão - Por Trás de Um Clássico


 Dirigido por Laurent Bouzereau, este documentário comemora o aniversário de 50 anos da obra-prima “Tubarão”, de Steven Spielberg, esmiuçando passo à passo a criação deste filme lendário que marcou profundamente a cultura pop, contando com imagens de arquivo, bastidores e depoimentos.

É o próprio Steven Spielberg quem dá início ao filme, revelando que “Tubarão” representou um divisor de águas em sua carreira: Com um início ativo na TV, Spielberg já havia dirigido episódios de séries, feito o longa-metragem televisivo “Encurralado”, tão bom que chegou a ser exibido em salas de cinema (como atesta o fã Guillermo Del Todo), e estreado no cinema com o drama “Louca Escapada”. Seu projeto seguinte, portanto, definiria a percepção que o público, a crítica e a indústria teriam dele como cineasta dali para frente.

E quis o destino que esse projeto fosse “Tubarão”.

Escrito pelo romacista Peter Benchley, inspirado em ideias nascidas de suas experiências litorâneas e do documentário sobre vida marinha “Morte Branca em Água Azul”, o livro “Tubarão”, com sua mistura de suspense, informação e ambientação pouco usual, havia se tornado um sucesso editorial, despertando o interesse dos produtores Richard D. Zanuck e David Brown que logo compraram os direitos de adaptação. Foi o próprio Spielberg, então com 26 anos, quem ofereceu-se para dirigir o filme.

As locações escolhidas, a fim de recriar o ambiente muito pitoresco da cidadezinha fictícia de Amity, foram na cidade costeira de Martha’s Vineyard, em Massachusetts, e a pré-produção foi iniciada a partir do momento em que o designer de efeitos práticos Joe Alves junto de sua esmerada equipe deram início à construção do tubarão –uma criatura animatrônica de 8 metros de extensão, mais tarde, batizada por Spielberg de ‘Bruce’ em alusão ao nome de seu advogado!

Os principais nomes escalados para os protagonistas foram Roy Scheider, Robert Shaw e um jovem Richard Dreyfuss –fora outros cinco nomes hollywodianos, aqui e ali, do elenco coadjuvante (tais como Lorraine Garry, Murray Hamilton e Susan Blacklinie, a mocinha presente na impactante sequência de abertura), todos os demais personagens e participações foram deliberadamente escolhidos por Spielberg entre as pessoas da própria comunidade de Martha’s Vineyard, a fim de garantir a maior autenticidade regional possível.

“Tubarão” teve suas filmagens iniciadas sem um roteiro integralmente definido –havia certa indecisão dos produtores e do diretor quanto aos elementos que deveriam ser removidos do livro, como um romance (que julgavam desnecessário) e os aspectos pontuais –e esse foi só o primeiro dos inúmeros contratempos: Quando chegou a hora de usar o tubarão Bruce, cujo aspecto artesanal recriava magnificamente um tubarão-branco real, a equipe se deu conta de que haviam construído um animatrônico para funcionar em água doce; na água salgada, ele apresentava mau-funcionamento uma vez que a salubridade comprometia o equipamento eletrônico –isso levou o diretor Spielberg a valer-se de criatividade, sugerindo a presença da criatura através de inúmeros truques de cena inspirados na linguagem de suspense do mestre Alfred Hitchcock. Também outros acidentes são relatados, como o afundamento de um dos barcos da produção, a bordo do qual estavam câmeras, a equipe técnica, o diretor e toda a aparelhagem de som.

É, porém, na bem-humorada implicância dos atores Robert Shaw (falecido em 1978) e Richard Dreyfuss que alguns dos depoimentos mais se detêm. Representando personagens antagônicos, os dois intérpretes, um veterano e calejado, outro jovem e ávido, levaram parte desse antagonismo para a realidade, fazendo com que o diretor Spielberg a criasse subterfúgios com os quais improvisava cena após cena a fim de capturar o realismo daquela dinâmica. Fruto desse processo é a cena da qual, segundo Spielberg, ele mais se orgulha em todo o filme: O momento em que os três protagonistas estão dentro da cabine do barco, à noite, compartilhando experiências. O monólogo maravilhoso perpetrado por Robert Shaw (onde é incluído na narrativa o precedente real do fatídico ocorrido com os marinheiros americanos do U.S.S. Indianápolis, durante a Segunda Guerra Mundial) foi acrescentado de última hora no filme pelo co-roteirista Carl Gottlieb e depois lapidado, na noite anterior à filmagem, pelo próprio Robert Shaw (ele mesmo, um escritor e dramaturgo já renomado).

É contado que, nos meses de sua realização, em função das alardeadas complicações nos bastidores, o cronograma de “Tubarão” estourou, levando Spielberg e sua equipe a experimentar um pesadelo –muitos foram aqueles que chegaram a afirmar para Spielberg que aquele filme arruinaria sua carreira.

Já durante a pós-produção, após finalmente ser concluída uma filmagem que parecia interminável, o músico John Williams (colaborador de Spielberg desde “Louca Escapada”) revela ter se inspirado nos acordes de Bernard Herman para “Psicose” a fim de criar a icônica trilha sonora de “Tubarão”, sem sombra de dúvidas, uma das mais marcantes do cinema.

Quando aportou nos cinemas em 1975, “Tubarão” recompensou o empenho e o talento de Spielberg quando tornou-se o primeiro blockbuster da era moderna –as filas de cinema contornavam quarteirões, dando origem a um fenômeno de bilheteria que teria continuidade dois anos depois com “Star Wars”, de George Lucas. Indicado ao Oscar de Melhor Filme (perdendo para “Um Estranho No Ninho”) e vencendo os de Melhor Trilha Sonora, Melhor Som e Melhor Montagem, “Tubarão” deu a Spielberg o status de autor cinematográfico com o qual, a partir dali, foi capaz de decidir o corte final de cada uma de suas obras (a começar por seu projeto seguinte, o personalíssimo “Contatos Imediatos do 3º Grau”). A influência e admiração irrestritas que a obra desperta são perceptíveis nos depoimentos de diretores como James Cameron, Steve Sodenberg e J.J. Abrahams, e de colegas próximos de Spielberg, como George Lucas, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e John Milius.

Num misto de nostalgia e alívio, Spielberg relembra os apuros que passou durante a realização de “Tubarão”, e as impressões traumáticas que continuaram acompanhando-o por muitos anos depois, a despeito do avassalador sucesso que o filme lhe proporcionou, ajudando a convertê-lo num dos maiores diretores de cinema de todos os tempos.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A Suprema Felicidade


 Expectadores um pouco mais jovens talvez lembrem do falecido Arnaldo Jabor mais como um comentarista esportivo e político do canal Globo do que como o cineasta, papel que ele desempenhou, e pelo qual ficou conhecido lá pelos anos 1970 e 80, com obras como “Toda Nudez Será Castigada” e “Eu Sei Que Vou Te Amar”. Com o golpe para a produção cinematográfica brasileira que foi a extinção da Embrafilme no início dos anos 1990, ele (como tantos outros profissionais da área) teve de abandonar o cinema por um tempo e ganhar dinheiro de outras formas. Diferente de outros profissionais, no entanto, Arnaldo não aproveitou o movimento da Retomada, que se iniciou logo naquele período, para voltar ao cinema; Arnaldo acabou aderindo de uma vez à persona que aparecia, vez ou outra, nos telejornais, destilando comentários ácidos.

Isso durou até 2010, quando ele enfim resolveu voltar em grande estilo para as telas de cinema, desta vez, entregando aquele que pode ser visto como seu “Amarcord” –um registro cheio de nostalgia e transfigurado de licenças poéticas de sua juventude.

É curioso que possa ser estabelecido, também, um paralelo entre “A Suprema Felicidade” e o semi-biográfico e amalucado “A Dança da Realidade”, de Alejandro Jodorowsky, lançado em 2013, três anos depois deste daqui, em relação à personagem da mãe: Interpretada pela inebriante Mariana Lima, a mãe (tal e qual no filme de Jodorowsky, ainda que com menos radicalismo) surge nua em diversas cenas (!), protagoniza algumas sequências musicais de pontual importância à narrativa e surge, em sua inapelável candura, como um contraponto exato à truculência paterna.

Acompanhamos aqui a infância (e depois adolescência e, em seguida, início da vida adulta) de Paulo, interpretado em suas três fases distintas por três atores diferentes: Aos 8 anos, pelo pequeno Caio Manhente; aos 13, por Michel Joelsas (de “O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias”) e, por volta dos 19, por Jayme Matarazzo. Longe de obedecer alguma cronologia, a trama vai e vem no tempo, oscilando entre diferentes momentos da vida de Paulo. Começa quando, ainda na infância, ele testemunha os percalços do pai (Dan Stubach), oficial do exército, durante a Segunda Guerra Mundial, e a frustração subsequente que acabou o consumindo de nunca ter tido a oportunidade para pilotar um avião. Ocasionalmente, a narrativa salta para a adolescência, quando, às voltas com o bullying do colégio católico em que estudou, ele passou a questionar algumas das doutrinas cristãs que lhe foram ensinadas. Mais tarde, muitos desdobramentos de sua vida e da vida de outros personagens encontrarão algum arremate, mesmo que desajeitado, quando ele irá se apaixonar pela stripper do cabaré El Dorado, mesmo lugar onde ele reencontra o pai, após um período de afastamento.

Não há dúvida de que Arnaldo Jabor evoca a obra ímpar de Federico Fellini na atmosfera quase mágica com a qual declama seu saudosismo e sua nostalgia do início ao fim, lançando mão, inclusive, de uma galeria de figuras excêntricas, caricatas e memoráveis extraídas certamente de suas memórias: O mendigo colecionador de livros velhos e revistas usadas (Emiliano Queiroz); o pipoqueiro de comentários divertidíssimos e libidinosos (João Miguel); o padre que professava exultante e carnavalesco os dogmas religiosos em sala de aula (Ary Fontoura); os parentes da mãe, moradores de uma casa onde a maioria dos hóspedes eram cegos (!!!); a avó espalhafatosa e macarrônica (a saudosa Elke Maravilha) –nenhum desses personagens, entretanto, se sobressai mais, em carinho e evidência, do que o do avô, vivido com brilho inconteste por Marco Nanini.

É o avô, desde quando Paulo era criança que, na falta de um pai que fosse atencioso e acolhedor, conduz Paulo às primeiras saídas noturnas, à descoberta de toda uma vida boêmia à pulsar pela noite afora, onde era ouvida música e onde eram discutidos sentimentos como o amor mundano pelas mulheres e a nem sempre harmoniosa relação com elas.

Arnaldo Jabor ficou mais de vinte anos sem filmar, e isso é sentido na tela: Na mescla irregular de gênero que ele almeja costurar na particularidade das suas reminiscências; no ritmo irregular e demasiado ininterrupto que ele imprime aos segmentos; e no manejo desordenado de muitos personagens com seus arcos dramáticos à pairar sem muito cuidado para lá e para cá no enredo. A despeito desses lapsos que minam constantemente o interesse do expectador durante toda sua (longa) duração, “A Suprema Felicidade” ainda conserva elementos fascinantes, envolvente e cativantes para torná-lo uma obra a ser destacada.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Força Maior


 É a partir de uma ideia espantosamente simples que o filme de Ruben Östlund (de “Triângulo da Tristeza”) se desenvolve. No entanto, uma vez estabelecida as linhas gerais dessa ideia, o roteiro e a direção, num refinamento raro, constroem um conto sobre cumplicidade, sobre responsabilidade em conjugação com os mais básicos instintos humanos, resultando numa obra inesperadamente bem-humorada, pontual em sua dramaturgia e surpreendente na reflexão que oferece ao público.

Tudo começa com uma simples viagem de férias de uma família sueca de classe média-alta para os Alpes Franceses. Formada pelo pai, Tomas (Johannes Kuhnke), a mãe Ebba (Lisa Loven Kongsli, de “Mulher-Maravilha”) e os dois filhos pequenos, Harry e Vera (os irmãos na vida real Vincent e Clara Wettergren), a família não poderia ser mais comum –turistas usufruindo do luxo que o hotel tem a oferecer.

É na ocasião de um mero café da manhã que tudo parece, subitamente, mudar: Uma avalanche repentina pega de surpresa os hóspedes instalados na varanda. A avalanche (num plano de câmera formidável capturado em um único take) irrompe por sobre todos eles e, enquanto Ebba se joga sobre os dois filhos, Tomas instintivamente foge do local para, com um certo constrangimento, retornar como se não fosse nada, depois que a avalanche se revela inofensiva, diferente do que tinha aparentado. Contudo, nas horas e dias que se seguem, o constrangimento vai dando lugar a um outro tipo de sentimento, tão sufocante quanto irreprimível.

Incapaz de aceitar o comportamento do marido –tornado ainda mais insustentável pelo fato dele, mais tarde, tentar contornar a situação para benefício próprio –Ebba verbaliza o ocorrido na companhia de uma amiga, Charlotte (Karin Myrenberg Faber) e seu affair americano (Brady Colbert, de “Violência Gratuita” e “Mistérios da Carne”). Tomas foi impelido a fugir do perigo, e nesse gesto de auto-preservação, o bem-estar da esposa e dos filhos ficou em segundo plano, e por essa razão Ebba se ressente.

As férias estão arruinadas e, por essa razão, o casal já não é capaz de resgatar a harmonia de antes.

Mesmo quando outro casal surge em cena (formado por Kristofer Hivju, da série “Game of Thrones” e Fanni Metelius), a celeuma a respeito da atitude de Tomas volta a assombrá-los. O homem até tenta, sem muita convicção, justificar a covardia de Tomas, afirmando que, quando confrontado com um medo primitivo, o ser humano pode reagir defendendo sua própria integridade sem medir as prioridades como o amor pela família. A justificativa não apenas soa vazia, como também não impede, esse outro casal, de ter, ele mesmo, sua própria discussão, mais tarde, onde acabam revendo a relação.

Embora haja na direção de Östlund um tom de observação antropológico que, em sua falta de piedade, lembre as experiências de Michael Haneke, um dos elementos que fazem de “Força Maior” uma obra tão sensacional é a magnífica percepção de humor presente na sua reflexão (potencializada no emprego do 3º Movimento do “Verão” das “Quatro Estações”, de Vivaldi, na trilha sonora), transformando num saboroso exercício de análise comportamental e conjugal, uma premissa que nas mãos de algum outro diretor poderia perfeitamente pender para o desnecessariamente dramático e comiserativo.

Em tempo: No ano de 2020, foi realizada uma refilmagem norte-americana de “Força Maior”, intitulada “Downhill”, com Will Ferrell e Julia Louis-Dreyfus, como é de se presumir, incapaz de se equiparar, com sua comédia rasteira, à maestria e à excelência desta obra européia.