Parte 1
Tão cheio de histórias para contar (muitas
inéditas até para fãs ferrenhos), este documentário da Netflix sobre a vida loca do astro Charlie Sheen
resultou tão extenso que precisou ser dividido em duas partes. A verdade é que
a trajetória de Charlie Sheen –nascido Carlos Irwin Estevez, filho do astro
Martin Sheen –se confunde com parte da história do showbizz norte-americano, no cinema e na TV. Aqui, o próprio
Charlie Sheen se expõe diante das câmeras e assume muitos de seus imensuráseis
lapsos, não se furtando de comentar muitos momentos escabrosos que ele mesmo
protagonizou ao longo de seus 60 anos.
O filme já começa surpreendente, revelando que
Charlie Sheen (assim como seus irmãos, entre eles o também ator Emilio Estevez)
foi amigo de infância de Sean Penn (que comparece prestando seu depoimento) de
quem eram vizinhos! Desde muito jovem, o pequeno Charlie conviveu com os
bastidores de Hollywood na companhia do pai –suas lembranças do caótico set de filmagens de “Apocalypse Now” são
uma passagem marcante –assim, não chegou a ser surpresa quando, já a adentrar
os anos 1980, ele e Emilio tiveram interesse em ingressar na carreira
cinematográfica. Com o nome Charlie Sheen (em correspondência ao nome artístico
do pai, algo que Emilio optou por não adotar), ele conseguiu seu primeiro papel
num filme de terror B, “The Grizzly 2”, que foi também a estréia de George
Clooney e Laura Dern (!), lamentando o fato de que, com isso, deixou escapar a
chance de estrelar “Karatê Kid” (!!). No entanto, ele conseguiu se sobressair
no papel seguinte, chamando a atenção numa ponta de apenas três minutos no
filme “Curtindo A Vida Adoidado”.
O estrelato até que veio de forma rápida e
inesperada: Ele aceitou o papel principal no drama da Guerra do Vietnam “Platoon”
–até uma maneira de homenagear o próprio pai –e, no ano seguinte, enquanto
filmava “Wall Street-Poder e Cobiça” com o mesmo diretor Oliver Stone viu a
produção ganhar o Oscar de Melhor Filme. A badalação logo trouxe seu ônus,
potencializado pela amizade dele com Nicolas Cage, outro notório bad boy do período: São inúmeras as
histórias de farras, bebedeiras e excessos protagonizadas pelos dois.
Ao fim da década de 1980, começo da de 90,
Charlie já demonstrava sinais preocupantes de descontrole, o que levou sua
família a tentar uma intervenção e a colocá-lo, pela primeira vez, numa clínica
de reabilitação. Ai sair de lá, ele logo engatou o sucesso “Top Gang-Ases Muito
Loucos”, uma paródia de “Top Gun-Ases Indomáveis” –logo depois dele, Sheen
estrelou a continuação (talvez, até mais famosa do que o primeiro filme!)
“Top Gang 2-A Missão”, paródia, por sua vez, de “Rambo 2”. Duas coisas ficaram
bem claras: A primeira, que o público conseguia perfeitamente vê-lo como um
comediante; e a segunda, que mesmo visitando o fundo do poço, uma recuperação
era possível.
Ainda na década de 1990, Sheen participou do
filme “Tudo Por Dinheiro” (que fez mais sucesso nos EUA do que aqui no Brasil)
do qual a maior e melhor consequência foi a amizade com o co-star Chris Tucker, entretanto, naquela época, um dos escândalos
de maior repercussão envolvendo o nome de Charlie Sheen foi mesmo o julgamento
de Heidi Fleiss, conhecida como “A Cafetina de Hollywood” por agenciar garotas
de programa para vários famosos de Los Angeles –levada à julgamento por sonegação
de impostos, Heidi teve sua lista de clientes revelada ao público, e quem era o
cliente número 1 da lista? O próprio Charlie Sheen, cujos cheques foram
encontrados em propriedade de Heidi!
Após esses e outros tantos percalços
inacreditáveis, os últimos anos da década de 1990 encontraram Charlie Sheen
disposto a reconquistar a sobriedade e
abandonar seus vícios. A Parte 1 se encerra, nesse ponto, contudo, todos sabem
que há muito mais história para ser contada na Parte 2 –e provavelmente, ficou
reservado para lá os trechos mais hardcore
da vida tumultuada desse inacreditável Charlie Sheen.
Parte 2
Na segunda parte de sua trajetória pra lá de
problemática e tumultuada, Charlie Sheen revela que chegou em meados de 1998
disposto a sossegar –ele pensava que a pior fase de seu vício em drogas e de
suas bebedeiras havia passado e, agora que estava limpo e fora da reabilitação,
seu objetivo era obter alguma estabilidade profissional. O cinema era então um
mercado extremamente disputado (e, devido à sua notoriedade, os papéis
rentáveis de protagonista não chegavam mais, apenas propostas para papéis
coadjuvantes) e ele achou que a TV oferecia oportunidades mais consistentes
para ele ganhar a vida. Foi assim que, no ano 2000, ele foi contratado para uma
sitcom chamada “Spin City”, estando
ela em sua quarta temporada (!). Acontece que o astro original de “Spin City”,
Michael J. Fox, havia sido diagnosticado com Mal de Parkinson e, diante de sua
saída da série, os produtores pensaram na arriscada possibilidade de contratar
outro ator para, com outro personagem, tentar substituir o protagonista
anterior –contra muitos prognóstipos, Charlie Sheen conseguiu dar uma sobrevida
à série, levando à ainda mais duas temporadas, o que resultou em sua vitória
como Melhor Ator em Série de Comédia e Musical no Globo de Ouro 2002, o
primeiro e único prêmio de atuação que, até hoje, Charlie Sheen afirma ter
conquistado!
Contudo, não há como falar de Charlie Sheen e
não falar da série “Two And A Half Men” –a Warner Bros. animada com o sucesso
de “Spin City”, encomendou uma série ao produtor Chuck Lorre, onde um dos
personagens principais, segundo ele, “tinha um Q de Charlie Sheen!”.
Os produtores conseguiram o próprio Charlie
Sheen para dar vida ao personagem Charlie Harper, dando o estopim inicial a um
dos maiores sucessos da TV norte-americana. Na época, Charlie estava casado com
a atriz Denise Richards (de “Tropas Estelares” e “Garotas Selvagens”) que havia
conhecido no set de “Spin City” e que esteve presente na primeira temporada de
“Two And A Half Men”. Ao longo daqueles anos –como é relatado pelo próprio
Charlie e também por seu colega de elenco, Jon Cryer –Charlie tentou compensar
a falta que começava a sentir do êxtase provocado pelas drogas e pelo álcool
tomando remédios; ele simulava sintomas de doenças específicas em consultas
médicas para que lhe fossem receitados remédios específicos que ele começou a
consumir. O resultado desse novo vício foram alterações súbitas de humor e
surtos de agressividade que culminaram no fim de seu casamento.
Não tardou para que o inquieto Charlie
arrumasse uma outra esposa, desta vez a socialite Brooke Mueller, instável e
viciada, cujo comportamento logo leva Charlie à retornar para o consumo de
drogas. Mais tumultos e escândalos se seguem, resultando em mais um divórcio.
Curiosamente, a audiência de “Two And A Half Men” só faz crescer, e com ela o
cacife de Charlie Sheen junto à Warner Bros. o que o leva, em sucessivas
negociações para novas temporadas, a se tornar o ator mais bem pago da história
da TV norte-americana!
Tanto dinheiro leva à ainda mais excessos, e
Charlie acaba contratando um traficante de drogas particular (!!), que depois
tornar-se seu grande amigo, e comparece até mesmo neste documentário (!!!),
prestando um descontraído depoimento (!!!!).
No auge do seu vício e acarretando muitos
transtornos para a produção da série, Charlie é retirado pelos produtores de
“Two And A Half Men”, nessa época ele também se casa com a atriz pornô Brett
Rossi (!!!) e, após divorciar-se dela, é diagnosticado HIV positivo.
O documentário mostra suas sucessivas
apresentações nos EUA –algo como apresentações de stand-up sem ser stand-up...
–nas quais Charlie insistia numa richa descabida com a Warner e os produtores que
o demitiram. De qualquer forma, essas apresentações serviram para consolidar
Charlie Sheen como uma espécie de ícone da atualidade, arrebanhando milhões de
seguidores em redes sociais, e transformando-o numa celebridade cult, com direito a memes e citações na internet; inclusive de algumas
entrevistas prestadas na época, das quais hoje Charlie admite sentir tremenda
vergonha.
Essa via-crusis auto-destrutiva só não o
engoliu por completo porque seu traficante pessoal (lembram dele?!), por ter se
tornado seu grande amigo, resolveu um dia reduzir gradativamente o conteúdo de
cocaína nas drogas que Charlie consumia (isso porque o próprio Charlie afirmou
que, no que dependesse dele, ele não iria parar!). Assim, em cerca de um ano, o
consumo já não o estava afetando, e ele se encontrou em condições de parar
definitivamente.
Desconcertante pela forma
extraordinariamente despoja com que seu personagem principal se presta à expor,
comentar, admitir e a fornecer seu ponto de vista da maior parte das passagens
que compuseram sua atribulada trajetória (só é omitida sua tentativa, não muito
eficaz, de emplacar com a série “Tratamento de Choque”), e em breves instantes,
tocante na evidência de um certo arrependimento com que Charlie admite ter
desperdiçado muitos momentos importantes em família por causa de seus vícios,
este documentário salienta a persona
singular de um ator carismático, talentoso e incorrigível que conseguiu se
tornar um personagem muito mais antológico e peculiar do que qualquer outro que
interpretou. A contar até a gravação deste documentário, Charlie Sheen está
limpo há oito anos.