sexta-feira, 6 de junho de 2025

O Dilema das Redes


 Pode ser um pouco difícil para alguns expectadores lidar com as verdades impactantes acerca da vida moderna com as quais este formidável documentário nos confronta. Produção exclusiva da Netflix, este “O Dilema das Redes” traz para a luz dos holofotes os depoimentos de Tristan Harris e de vários outros ex-funcionários de algumas das mais poderosas empresas de automação mundial, como o Facebook, o Instagram, o Gmail, o Pinterest, o Twitter, o TikTok e o Google –e todos eles, revelam terem sido testemunhas de uma prática corporativista despida de princípios morais. Uma prática que já conduziu a alguns momentos de profunda celeuma da nossa civilização atual e, afirmam categoricamente certos especialistas, pode levar ao colapso total da sociedade humana como nós a conhecemos.

Sim, dirigido por Jeff Orlowski, “O Dilema das Redes” é assustador nesse nível!

O que acontece é que Tristan Harris, assim como os programadores Justin Rosenstein e Tim Kendall, e o cientista da computação Jaron Lanier, além de muitos outros, viram por dentro o funcionamento de empresas que nasceram no Vale do Silício e que, com o advento implacável e irrefreável da internet, cresceram exponencialmente a ponto de ditarem os rumos globais. Entretanto, ninguém previu os efeitos colaterais acarretados pela transformação irreversível dos relacionamentos interpessoais com a adição das mídias digitais. Segundo eles, a ideia de anonimato nas redes sociais é pura ilusão: A tecnologia atual é mais do que capacitada para rastrear e compilar dados sobre qualquer pessoa, dentre tantos bilhões, que se veem conectados em todo o planeta Terra. Em seus depoimentos, eles afirmam, há um algoritmo para toda e qualquer pessoas conectada (e isso inclui, VOCÊ, que neste momento lê este texto!), e esse algoritmo, numa primeira análise, estuda os padrões de comportamento e gostos pessoais do usuário, para então sugerir páginas e mais páginas daquilo que ele está inclinado a gostar. É, no entanto, uma ilusão: O algoritmo tem apenas duas diretrizes principais; a primeira é garantir a conectividade do usuário e fazê-lo viciar nas mídias digitais disponíveis (e o algoritmo é tão incrivelmente eficiente nisso porque foi projetado por estudiosos do comportamento humano com base em noções aprimoradas de psicologia); a segunda e mais terrível de suas diretrizes é que o algoritmo essencialmente foi criado para estabelecer uma manipulação que cerceia cada pessoas conectada. Alienação humana. Uma vez monitorados os padrões comportamentais e as predisposições culturais, políticas e sociais da pessoa, o algoritmo sabe para qual nicho de pensamento pode direcionar o usuário da rede, sem que ele sequer perceba o que está sendo feito.

Com base nesse procedimento, já realizado à décadas, aconteceu o Movimento Terraplanista, o Pânico da Covid e a recente Polarização Política –além de outros tantos fenômenos comportamentais em massa. O extremismo ideológico é apenas uma das inúmeras consequências do impacto das redes sociais –e das inteligências artificiais que a regem –na condução da nossa sociedade. As gerações mais novas, aquelas que cresceram tomando contato direto com as tecnologias móveis como o celular, são as mais afetadas: No ponto em que estão, os jovens têm seus cérebros absolutamente incapazes de se desvencilhar da conectividade. Numa encenação alarmante realizada com o objetivo de ilustrar o efeito da manipulação do algoritmo sobre as pessoas, vemos os membros de uma família tentando lidar com os vícios em tecnologia dos dois filhos mais jovens (vividos por Skyler Gisondo e Sophia Hammons). A mãe propõe que fiquem uma hora –uma única hora! –desconectados a fim de terem um almoço tranquilo em família. Para tanto, ela coloca os celulares dentro de um pote hermético com um timer programado para se manter fechado por 60 minutos. Após alguns segundos de desconforto da parte dos filhos adolescentes, a caçula nota o celular piscando com os avisos de notificações e não resiste à vontade de tentar abrir o pote. Quando não consegue, ela simplesmente pega um martelo (!) e destrói o pote para poder pegar novamente seu celular (!!).

É curioso constatarmos que, do ponto de vista jurídico, quase não existam leis que se apliquem ao uso ou o desuso da internet –e isso é somente um dos fatores por meio dos quais esse controle desmedido e assombroso (algo quase orwelliano) sobre a vida de milhões de pessoas é executado sem qualquer impunidade, legislação ou questionamento moral. Especialistas em automação garantem que o desempenho sem freios do algoritmo sobre a índole desses jovens tão sugestionáveis pode levar o mundo, em questão de anos, a um cenário caótico como uma disfunção autocrática e uma economia global em ruínas –e essas são as calamidades que PODEM ser previstas; existem ainda aquelas que podem surgir sem que ninguém espere!

Ao trazer um pesadelo outrora reservado às mais distópicas das ficções para o mundo real, “O Dilema das Redes” almeja fazer uma advertência e levar a uma espécie de conscientização da população mundial acerca do uso indiscriminado das redes sociais e seus efeitos nocivos. Esperamos que não seja tarde demais.

domingo, 1 de junho de 2025

Pecadores


 A premissa desta brilhante obra do diretor Ryan Coogler parece claramente beber da fonte de um cultuado filme de terror dos anos 1990, dirigido por Robert Rodrigues e roteirizado (e estrelado) por Quentin Tarantino –“Um Drink No Inferno”.

Como naquele filme há, em “Pecadores”, uma dupla de irmãos (gêmeos, neste caso), cuja trajetória de crimes e mortes os leva à noite fatídica que ocupa o cerne da narrativa; e como naquele filme, há aqui também uma circunstância de cerco onde os protagonistas sobreviventes devem enfrentar perigos impronunciáveis na forma de vampiros até o sol amanhecer –perigos esses que representam um contraponto muito maior ao perigo que eles mesmo representavam.

O ano é 1932. No estado da Louisiana, na cidadezinha de Clarksdale, recém-livrada da Ku Klux Khan (ou, pelo menos, é o que parece), os gêmeos Elijah e Elias Moore, também conhecidos por Smoke e Stack (ambos interpretados, por meio de notáveis efeitos digitais de duplicação, por Michael B. Jordan), retornam ao local onde cresceram dispostos a fazer fortuna. Após um período em Chicago –onde aumentaram sua fama de implacáveis para muito além dos crimes locais –os gêmeos agora têm dinheiro para investir no sonho de um Clube de Blues, comprado de um proprietário ex-Ku Klux Khan, e para o qual almejam trazer seus conhecidos mais próximos: O comerciante chinês Bo Chow (Yao) e sua esposa Grace (Li Jun Li, de “Babilônia”) para ajudar nos preparativos; a esposa de Smoke, Annie (Wunmi Mosaku, de “Deadpool & Wolverine”), para contribuir com seu toque mágico na cozinha; o grandalhão Cornbread (Omar Miller, de “8 Mile-Rua das Ilusões”) auxiliando na segurança; e fornecendo a música aos frequentadores, o veterano e calejado pianista Slim (Delroy Lindo, de “Regras da Vida”) e o primo deles, o assombrosamente talentoso Sammie (Miles Caton); além das presenças das beldades Pearline (Jayme Lawson, de “Batman”), como cantora, e Mary (Hailee Steinfeld), como namorada de Stack.

Tal e qual (de novo) “Um Drink No Inferno”, a trama de “Pecadores” se desdobra em uma única noite. Durante o seu breve prólogo, uma narração em off nos explica que existem pessoas cujo talento musical consegue evocar a música do passado e do futuro, tal habilidade, é explicado também, desperta a atenção e o interesse de alguns seres das trevas, capazes de perceber essa importância sobrenatural.

É a música de Sammie (cujo alcance e a influência através dos tempos são ilustrados numa cena absolutamente memorável) que acaba atraindo as criaturas que, de um ponto em diante, darão um novo rumo ao filme.

Ao contrário da obra de Rodrigues e Tarantino –criticada, à época de seu lançamento, por trazer uma guinada tão abrupta para o gênero de vampiros na metade de sua duração que praticamente contrastava com a parte anterior do filme –este trabalho de Coogler nunca perde sua harmonia, sua solidez ou sua coerência. Na maneira como justapõe os revezes raciais como continuidade trivial de um horror ainda maior a espreitar nas sombras, “Pecadores” se assemelha ao também excelente trabalho desempenhado na série “Entrevista Com O Vampiro”, cuja primeira temporada também trazia essa mesma postura alegórica.

Assim como tantas obras igualmente geniais a ganhar a ribalta, o filme de Coogler se apropria de um difundido conceito de terror para discutir temas sempre em voga, reflexões de ordem social e humana, enquanto deixa sua própria marca dentro de um gênero popular e inesgotável.

E neste caso, ele o faz com um trabalho vibrante e impecável –“Pecadores” é uma jóia preciosa dentre as inúmeras obras cheias de brilhantismo, inteligência e ímpeto renovador que afloraram através do gênero de terror nas temporadas 2024 e 2025, como “Entrevista Com O Demônio”, “A Substância”, “Nosferatu”, “Presença”, “Acompanhante Perfeita” e vários outros, sinalizando uma fabulosa onda crescente de um novo e revitalizado terror concebido em terras norte-americanas.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

A Fonte da Juventude


 Diretor peculiar e prolífico, Guy Ritchie já adentrou quase todos os gêneros desde que iniciou sua carreira com o cultuado “Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes”; e o mais impressionante é que ele mantém um ritmo de praticamente um filme por ano. Seria algo normal se fossem filmes ao estilo de Woody Allen (embora também nisso haja mérito), intimistas, dialogados e em baixa voltagem, no entanto, os filmes de Ritchie são cheios de energia, dinâmicos, atrevidos para com a narrativa e inconformistas para com a técnica cinematográfica.

“A Fonte da Juventude”, como tantos antes dele, vale-se da influência quintessencial de “Os Caçadores da Arca Perdida” em particular, e das aventuras de Indiana Jones em geral, para trazer uma produção elaborada em suas cenas de ação aventurescas e intrincada nas investigações arqueológicas que a norteiam. O casal de irmãos, Luke (John Krasinski, diretor e ator de “Um Lugar Silencioso”) e Charlotte Purdue (Natalie Portman) tem maneiras diferentes de honrar o legado do pai, um lendário caçador de relíquias: Enquanto Charlotte trabalha na curadoria de um museu de antiguidades –acomodação que lhe permite levar uma vida doméstica, mas não privada de aborrecimentos (como atesta seu iminente divórcio) –Luke viaja ao redor do mundo envolvendo-se em encrencas arriscadas para pôr a mão em tesouros inestimáveis em nome da História e da Ciência. O caminho dos dois se cruza quando o milionário Owen Carver (Doomnhall Gleeson) contrata Luke, sob a condição de ter também o gênio dedutivo de sua irmã, para encontrar a mítica fonte da juventude: Owen padece de câncer e a fonte, ele supõe, deve conter as propriedades curativas que haverão de salvá-lo. E Owen tem dinheiro de sobra pra financiar a empreitada com toda a sorte de bugiganga tecnológica à disposição.

E aí entra, nesse diferencial estilístico, outra característica que visa afastar um pouco a obra de Guy Ritchie da comparação um tanto constrangedora com a obra-prima de Steven Spielberg: Em “A Fonte da Juventude”, o fato da trama se situar no tempo presente está visível em cada detalhe, sobretudo, no vasto aparato digital do qual os protagonistas e seus genéricos coadjuvantes lançam mão para decifrar a quase indecifrável trilha de pistas dispostas ao redor do mundo, nas mais diversas preciosidades históricas, que levarão à dita fonte da juventude. E isso, consequentemente, aproxima o filme de “O Código Da Vinci” no desenrolar quase inverossímil de pistas absurdamente eruditas e elaboradas que se sucedem –inclusive, Luke, o protagonista vivido por John Krasinski tem, sim, muito de Indiana Jones (o desembaraço quase sobrehumano nas cenas de ação e –vá lá –o carisma do ator), mas tem muito de Robert Langdom também (o vasto conhecimento acadêmico em simbologias e relíquias antigas que convenientemente vem sempre a calhar).

Em algum momento, a fim de tornar mais interessante e conflituoso esse caminho, surge um grupo de mercenários instruídos a impedir qualquer avanço de investigadores ocasionais na aproximação da fonte da juventude, esses mercenários são liderados pela habilidosa Esme (Eiza González, de “Em Ritmo de Fuga”) que, ao longo das idas e vindas e dos percalços nada tranquilos de seu embate com Luke, vai estabelecendo com ele uma relação algo ambígua –e que já se vê posicionada para ser melhor desenvolvida nas potencialmente vindouras continuações do filme.

“A Fonte da Juventude” traz elementos de sobra para agradar aqueles que não se incomodarem tanto com sua falta de originalidade: Do início ao fim, vem adornado com o dinamismo característico de Guy Ritchie na direção, é uma produção farta na pirotecnia das cenas de ação, e seu elenco, no mais, dá conta do recado (sem falar que o foco principal em dois irmãos ao invés do usual casal romântico é bem curioso), contudo, ainda não foi dessa vez que o cinema conseguiu capturar aquela magia presente nas realizações espetaculares que Spielberg entregou nos anos 1980. E essa falha não é exclusividade dos imitadores: O próprio Indiana Jones, em sua produção mais recente, “Indiana Jones e A Relíquia do Destino”, não foi capaz de resgatar o mesmo encanto e fascínio com que fez nascer, no passado, todo um subgênero de aventura arqueológica à moda antiga.

sábado, 24 de maio de 2025

Um Filme Minecraft


 A verdade é que poucas pessoas colocavam fé num projeto que almejava adaptar para o cinema o jogo “Minecraft” –uma simulação onde crianças (pois, o jogo é mais voltado para elas...) constroem casas e edificações afim a partir de cubos feitos de diferentes materiais numa dimensão onde as leis da Física são mais simplificadas –sabendo então que o projeto era dirigido por Jared Hess, diretor do cultNapoleão Dynamite” e do simplesmente esquisito “Nacho Libre”, decretava de vez a morte comercial da produção. Contudo, eis que numa ironia extraordinária do destino, “Um Filme Minecraft” sagrou-se como a grande bilheteria do primeiro semestre do ano de 2025, esmagando feito um rolo compressor as ambições financeiras de “Branca de Neve”, da Disney –que estreou no mesmo período.

A tônica, como em alguns dos filmes realizados por Hess, é difícil de ser apreendida: “Um Filme Minecraft” é, sim, uma obra estranha, e tem orgulho disso. Seus personagens são desajustados, seus intérpretes são, num primeiro momento, escolhas pouco usuais. Sua trama é non-sense, sem muito propósito ou razão de ser e, em seus melhores momentos, fragmentada. Ainda assim, “Um Filme Minecraft” é muito, muito mais que a soma de suas partes.

Essa jornada tortuosa, ainda que sempre engraçada, começa com Steve (vivido por Jack Black, colaborador de Jared Hess em “Nacho Libre”) um cara comum que, na narração cheia de intensidade e energia de Black, afirma desde criança ter sempre nutrido o sonho de... garimpar numa mina! Quando adulto ele finalmente resolve fazê-lo e, durante uma de suas garimpagens, encontra uma espécie de cubo cósmico (a lembrar, de fato o Tesseract visto em “Vingadores”) que lhe permite ir para outra dimensão! –sim, a trama é absurda e, conforme avança, equilibra uma insanidade sobre a outra e segue em frente.

Essa outra dimensão –chamada Overworld ou Mundo Superior –corresponde pois ao ambiente do jogo “Minecraft”. É ali que o protagonista descobre que, usando dos cubos à disposição (lá tudo tem o formato quadrado), pode construir tudo o que quiser, com a restrição de sua própria imaginação. É ali, também, que Steve vive por anos, até que acidentalmente acaba indo parar em outro mundo, o Mundo Inferior, este dominado por porquinhos malignos (tão fofos quanto hilários!) que almejam chegar ao Mundo Superior para dominá-lo. Prisioneiro, Steve despacha seu cachorro, Dennis (que também é quadrado, como tudo o mais naquele lugar!), para o mundo real, onde deve esconder o cubo que abre o portal para o Mundo Superior.

Anos mais tarde, o ex-campeão de videogame Garett ‘O Lixeiro’ Garrison (Jason Momoa, engraçadíssimo, vivendo um daqueles personagens presos ao passado que o diretor Jared Hess tanto ama), Dawn (Danielle Brooks, da versão musical de “A Cor Púrpura”), uma corretora de imóveis e os jovens irmãos Natalie (Emma Myers, de “Manual de Assassinato Para Boas Garotas”, a única do elenco a trazer um registro dramaticamente inapropriado) e Henry (Sebastian Eugene Hansen) acabam encontrando o cubo e vindo para o Mundo Superior, onde acham Steve e seguem para... bem, não fica bem claro qual é o objetivo deles (!). Nem o tal Mundo Superior, nem o mundo real correm qualquer perigo na trama –mesmo os porquinhos, vilões do filme, não oferecem qualquer ameaça –e durante boa parte da segunda metade de “Um Filme Minecraft”, o propósito mais sólido do grupo de protagonistas reunidos por acaso parece ser o de encontrar o cachorro de Steve (!?).

Entretanto, da forma como o filme é conduzido, isso não importa. Cada cena é simplesmente um deleite, graças à sintonia do elenco reunido em cena –sobretudo, Jack Black e Jason Momoa que formam um par imbatível na manutenção de um humor improvável e contagiante –e às cenas estranhamente curiosas engendradas pelo diretor –artesão desacostumado com produções desse porte e com efeitos digitais, Jared Hess usa de sua inadequação com o material para benefício próprio e compõe um filme onde cada cena se sustenta com um propósito distinto; ainda que, no fim das contas, o objetivo cristalino seja sempre o de divertir.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Conclave


 Adaptado do livro de Robert Harris, lançado em 2011, “Conclave” pode ser descrito como um filme onde, durante toda a sua totalidade, acompanhamos homens religiosos (cardeais, em sua maioria) a dialogar pelos cantos, ocupados com seus dilemas e com as conspirações internas de sua própria política –no entanto, apesar de aparentemente se restringir realmente a isso, o filme de Edward Berger (cuja obra anterior, “Nada de Novo No Front”, já havia deixado bem claro seu potencial) consegue envolver, surpreender e engajar amparado em alguns valores hiperlativos que o fazem cinema de altíssimo nível: O roteiro brilhantemente construído e conduzido (tanto que venceu a categoria de Melhor Roteiro Adaptado no Oscar 2025), o elenco primoroso que eleva a tensão e o suspense embutidos nas intrigas, e sua prodigiosa montagem, capaz de impor ritmo e atmosfera onde poderia não haver nada disso.

O Vaticano é abalado pelo notícia da morte do Papa. A fim de eleger um novo pontífice, os poderosos cardeais, proeminentes figuras de liderança da Igreja Católica ao redor de todo o mundo se reúnem para a execução de um conclave, por meio do qual, após dias de deliberação e votação, isolados de todo o mundo, devem chegar a um consenso e apontar o novo Papa entre um deles mesmos.

Para conduzir tal conclave com o máximo de parcimônia, harmonia e sensatez é escolhido o torturado Cardeal Lawrence (Ralph Fiennes, digno de um Oscar), cujas atribulações o levaram a uma tentativa de renunciar ao seu cargo religioso, a despeito de despontar como um dos possíveis candidatos a novo Papa. Outros a disputar o papado são: O cotadíssimo Cardeal Tremblay (John Lithgow), oculto atrás de segredos conspiratórios que logo revelam ser ele uma verdadeira serpente; o Cardeal Adeyemi (Lucian Msamati), da África, truculento e objetivo como seu ofício exige, mas dono de um passado comprometedor; o Cardeal Tedesco (Sergio Castellitto, de “O Último Beijo” e “Imensidão Azul”), cujas posturas ideológicas extremistas fazem dele um correspondente aos inquisidores da Idade Média nos tempos atuais (!); e o estratégico ainda que demasiado errático Cardeal Bellini (Stanley Tucci).

Esses personagens –e outros mais que se somam gradualmente à narrativa (como a Irmã Agnes, primorosamente interpretada por Isabella Rossellini) –correspondem, de certa forma, à algumas pautas em vigor no mundo, por meio das quais vislumbramos a gênese da intolerância, das divisões e até mesmo das guerras. Em última instância, “Conclave” é um trabalho fenomenal que, através desse fascinante e tremendamente misterioso e sigiloso micro-cosmos que retrata com minúcia assombrosa (somente o livro de Robert Harris, antes deste filme, atreveu-se a vislumbrar a reconstituição de como seria o desenrolar de um conclave real), observa cada uma das predisposições que nos afastam de um consenso e nos impelem, enquanto sociedade, ao atrito –nesse sentido, esta estupenda realização de Edward Berger dialoga com a série documental “Por Que Odiamos”, produzida por Steven Spielberg, na forma objetiva, transparente e cirúrgica com que se debruça sobre as celeumas morais, sociais e culturais dos seres humanos –mesmo que tais seres humanos sejam homens vistos do alto de uma pressuposta santidade.

domingo, 18 de maio de 2025

R.O.T.O.R.


 Mais uma daquelas obras obscuras, de baixo orçamento e de baixa qualidade, que surgiam, como baratas vindas de um bueiro (!), no cinema pauleira dos anos 1980 –e que, com frequência também acabavam migrando para as fitas de VHS, no picareta sub-gênero dos filmes de ação da época do homevideo, “R.O.T.O.R.” graças à galhofa sádica de alguns cinéfilos que insistiram em assistí-lo ao longo dos anos pela comédia involuntária que é, não caiu de todo no esquecimento que, na verdade, merecia.

Dirigido nas coxas por Cullen Blaine –designer da indústria televisiva e cinematográfica que teve maior desempenho profissional dentro do ramo da animação, tendo inclusive produzido o desenho animado oitentista “The Get Along Gang” –“R.O.T.O.R.” trata-se de uma produção com orçamento de fundo de quintal, aproveitando o apelo de diversas outras obras comercialmente influentes do período e que, por isso mesmo, renderam imitações, umas bem esdrúxulas, como esta daqui. Há em “R.O.T.O.R.” algo de “Robocop” (o policial futurista feito a partir de características humanas), de “Exterminador do Futuro” (a máquina maligna voltada contra os seres humanos) e até de “Maniac Cop” (o policial fascista que sai matando a esmo, numa contagem de corpos desenfreada).

A trama abilolada de “R.O.T.O.R.” começa quando um homem é encontrado numa beira de estrada, vítima do que parece ser um acidente de carro. Tal homem é Coldyron (Richard Guesswein, cuja carreira foi mais voltada à instrução de artes marciais), o nosso protagonista que, levado à uma delegacia para prestar depoimento, dá início a um flashback com o objetivo de elucidar toda a trama do filme –no entanto, a trama que ele relata termina não encontrando qualquer conexão com o tal acidente no qual o encontramos primeiramente (!).

Coldyron é, por trás do físico marombado, dos modos trogloditas e da conversa monossilábica e acéfala, por incrível que possa parecer, uma espécie de inventor (!), e sua invenção mais aguardada é, como veremos numa reunião sucedida com executivos na empresa onde trabalha, um ser mecânico destinado a substituir a força policial. Seu nome é R.O.T.O.R. (sigla para Robotic Officer Tactical Operations Research), e embora seja basicamente um esqueleto robótico avançado (ainda que os efeitos especiais jurássicos e datados o façam parecer mais uma animação em stop-motion), ele será revestido de um composto que simulará a pele e a aparência humana.

R.O.T.O.R., porém, como afirma Coldyron não está pronto; levará, pelo menos, uns quatro anos até que um protótipo satisfatório seja projetado. Como seus contratantes não ficam nada felizes com a data demasiada longa, o projeto é acelerado, ignorando a possibilidade de haverem efeitos colaterais e, diante dessa demonstração de ignorância, Coldyron se demite.

Na sequência, o filme traz diversas cenas banais e estendidas além do necessário para que “R.O.T.O.R.” tenha mais duração do que seu simplório enredo permite: Coldyron e sua esposa, personagem completamente sem utilidade no roteiro (!), saem para jantar (numa cena que parece não terminar nunca!); e os funcionários da empresa/laboratório aparecem, conversando sobre banalidades.

É quando R.O.T.O.R., totalmente finalizado e já revestido de seu disfarce humano (a lembrar os cantores do “Village People” com bigode e tudo!) emerge de dentro de um tanque –mas, espere! Ele não levaria quatro anos para ficar pronto?!

De qualquer forma, R.O.T.O.R. encontra um armário e veste-se com um uniforme policial e, mais a frente, enquanto perambula pelo complexo sem ser notado (atropelando umas cadeiras de plástico!), encontra uma moto, feito sob medida para ele, possui até mesmo um emblema escrito R.O.T.O.R.!

A máquina assassina roda pela cidade (na verdade, nem mata tanta gente assim, ele fica mais perseguindo uma única moça como veremos mais a frente...), e acaba detectando o excesso de velocidade de uma mocinha ao volante (!). Na qualidade de vítima principal de R.O.T.O.R. (provavelmente o orçamento não permitia muitas participações...), ela irá fugir dele pelos próximos minutos de filme, incluindo a cena da chegada dela dentro de uma lanchonete na qual R.O.T.O.R. irá enfileirar e imobilizar uma sucessão de adversários com sua força biônica –e não há golpes de karatê, nem pose de marombado que o segure!

Eventualmente, os caminhos de R.O.T.O.R., de sua vítima aleatória (nem sequer lembro o nome da atriz...) e de Coldyron irão se cruzar, levando ao clímax no qual os protagonistas enfrentarão o maquinário revoltado com os seres humanos usando uma corda explosiva (!?) e amarrando seus membros (sabe Deus como) para... enfim, é só vendo para crer no non-sense absurdo que é essa cena.

Na época já longínqua e jurássica do homevideo em VHS, eu já havia ouvido falar de “R.O.T.O.R.”, em afirmações que davam conta de que era um filme para muito além da concepção de um mero ‘filme ruim’. Precisei conferir por conta própria: “R.O.T.O.R.” é tão incrivelmente desleixado, tão assombrosamente sem sentido, tão esdrúxulo e estapafúrdio em seu viés técnico e em suas predisposições narrativas que chega a servir de aula sobre como NÃO fazer um filme.

domingo, 4 de maio de 2025

Thunderbolts*


 Quando a Marvel Studios lançou a pra lá de bem-sucedida dobradinha, “Vingadores-Guerra Infinita” e “Vingadores-Ultimato”, em 2018 e 2019, não imaginava estar criando uma verdadeiro cilada para si mesma e para suas vindouras produções a serem elaboradas futuramente –ao conceber duas obras que, em si, atingiam ápices cinematográficos antes inimagináveis, a Marvel estabeleceu um patamar altíssimo, padrão para as expectativas que seu público teria em relação à obras que viessem depois.

Embora realmente tenham havido, depois disso, filmes oscilantes em qualidade –e desse fato alimentar uma constante e aborrecida discussão sobre a saturação das adaptações de histórias em quadrinhos junto ao público –a Marvel ainda conseguiu, vez ou outra, entregar algo de qualidade. Afinal, para cada presepada como “Thor-Amor e Trovão”, havia um passatempo satisfatório como “Homem-Aranha Sem Volta Para Casa”, para cada deslize como “Homem-Formiga e A Vespa-Quantumania” ou “As Marvels”, havia um belo trabalho como “Guardiões da Galáxia Vol. 3” ou “Deadpool & Wolverine”.

Bem, em 2025, a Marvel Studios, se não foi capaz de fazer “Capitão América-Admirável Mundo Novo” tão memorável quanto seus pares, ela conseguiu, com este “Thunderbolts*” entregar aos expectadores tudo aquilo que, no geral, sempre deles se espera –uma obra vibrante, com personagens cativantes e envolventes do início ao fim, bem conjugada no manejo de uma trama que oscila, com desenvoltura e descontração, entre a ação, o humor e o drama.

Grupo clandestino e marginalizado de anti-heróis nos quadrinhos da Marvel –mais ou menos que é “O Esquadrão Suicida” na DC Comics –os Thunderbolts são, tal e qual os Vingadores, uma junção de vários personagens, oriundos de diversos filmes e séries que a Marvel Studios foi produzindo ao longo dos anos; com o adendo de que, diferente dos heróicos e nobres protagonistas à toda prova de antes, agora temos aqui personagens ambíguos, sobreviventes no limiar de suas próprias falhas traumáticas, das experiências defeituosas e das trajetórias torpes que a cada um foi imposta. E o diretor Jake Schreier (de "Cidades de Papel") espertamente soube ancorar esses elementos um tanto quanto diferenciais na narrativa absorvente, política e intrigante que conduz com seu filme.

Pode-se partir do princípio que o eixo em torno do qual “Thunderbolts*” gira é Yelena Belova (Florence Pugh, maravilhosa), a ‘Nova Viúva Negra’, introduzida no Universo Marvel em “Viúva Negra”, sendo irmã adotiva de Natasha Romannof, a Viúva Negra ‘original’, e amargurada desde a morte desta em “Ultimato” –Yelena assume, em “Thunderbolts*”, um protagonismo que Natasha jamais teve a chance de ter num filme dos Vingadores. Além dela, seu ‘pai’, Alexei Shostakov (David Harbour), o Guardião Vermelho, surge como o grande alívio cômico do filme, roubando com carisma inabalável, muitas das cenas em que aparece. Operando nas sombras, e agindo com a ambivalência moral que pouquíssimas vezes vimos em Natasha, Yelena vai finalmente deixando para trás o luto pela irmã, enquanto começa, pouco a pouco, a questionar as missões nebulosas designadas a ela por Valentina Allegra de Fontaine (Julia Loius-Dreyfus, perniciosa feito uma cobra!). Executiva de alto nível em Washington, e encarregada da C.I.A., Valentina enfrenta, no Senado, uma tentativa de impeachment capitaneada, entre outros, por Bucky Barnes (Sebastian Stan, cada vez mais sensacional), devido às atividades nada ortodoxas do Serviço de Inteligência durante a sua gestão. Para continuar no jogo do poder e evitar o impeachment, Valentina vale-se de Yelena para ‘queimar arquivos’ referentes às inúmeras experiências ilícitas que andou autorizando para criar toda uma nova geração de superhumanos a fim de substituírem os tão saudosos Vingadores.

É assim que Yelena termina numa base de operações científicas longínqua, encrustrada numa montanha, onde aparentemente deve dar cabo da Fantasma (Hannah John-Kamen), uma operativa com poder de intangibilidade cuja origem foi revelada em “Homem-Formiga e A Vespa”. No entanto, lá Yelena encontra também o Agente Americano, John Walker (Wyatt Russell), o ex-Capitão América mostrado na minissérie “Falcão e O Soldado Invernal”, enviado para neutralizá-la, além da Treinadora (Olga Kurilenko), também vista em “Viúva Negra” –e, após alguns atritos, todos chegam à conclusão de que foram para lá despachados a fim de se matarem, pois, como tudo o mais, eles são indícios vivos das travessura ilegais que Valentina tem autorizado por baixo dos panos, e devem ser, assim, eliminados. Junto deles, há também o misterioso Bob Reynolds (Lewis Pullman, filho do ator Bill Pullman) cuja atitude normal e amedrontada esconde o fato de que foi cobaia numa experiência que pode fazer dele um dos seres mais poderosos do Universo Marvel: O Sentinela.

Adentrar mais na trama de “Thunderbolts*”, que se desdobra para muito além disso, seria revelar spoilers que certamente comprometeriam a diversão –e fica, portanto, aquela orientação básica, usual à todo lançamento de um filme da Marvel Studios, de evitar a internet (e os spoilers) até que se tenha visto o filme!

Adornado de um clima sombrio e fatalista que poucos filmes da Marvel em geral chegaram a adotar –até porque, neste caso, isso reflete bastante as personalidades alquebradas e em constante conflito pessoal dos anti-heróis aqui reunidos –“Thunderbolts*” é dirigido e roteirizado com primordial atenção à essas facetas desiguais de seus personagens, levando em conta cada uma de suas motivações para a composição do arco de história que os fará uma equipe e os colocará, no clímax fabuloso, na improvável condição de heróis –e por mais que Yelena e Bucky possuam um respaldo de protagonismo muito maior na importância final, todos aqui têm seu momento.

É um consenso entre crítica e público que “Thunderbolts*” é um grande acerto da Marvel Studios, resta saber se eles seguirão conseguindo atender as difíceis exigências de seu público nos próximos projetos –e pelo menos um desses projetos ganha aqui um gancho narrativo e tanto na sua empolgante cena pós-créditos!