domingo, 17 de agosto de 2025

O Bar Luva Dourada


 Existem filmes que não são feitas para deleitar o expectador. São obras corrosivas, desconfortáveis, incômodas e, não raro, perturbadoras –nem por isso, elas devem ser consideradas obras ruins. Alguns desses exemplares, em sua maestria do retrato de certos aspectos do mundo-cão, beiram a genialidade. A produção alemã “Der Goldene Handschuh” –ou “O Bar Luva Dourada” –dirigido por Fatih Akin, e lançado em 2019, é um desses filmes.

Nele, somos testemunhas do dia-a-dia sinistro e degradante de Fritz Honka (Jonas Dassler, irreconhecível por trás de uma densa e amedrontadora maquiagem), morador da cidade de Hamburgo, na Alemanha, um cidadão de classe média-baixa de meados dos anos 1970, e também um serial-killer cuja natureza macabra, na vida real, só foi descoberta por puro acaso –quando um incêndio, num apartamento ao lado do seu, revelou quatro cadáveres que ele ocultou em um alçapão! Na cena em que somos apresentados a ele, Honka já tratou de matar –uma das tantas mulheres desamparadas, perdidas e sem perspectivas que ele encontrava naquela desolada Alemanha de então –e, ao tentar desovar o corpo para fora de seu apertado apartamento, é quase flagrado por uma garotinha. Honka hesita, e volta. E assim, dá início ao hábito hediondo que o filme de Fatih Akin haverá de registrar até seu desfecho.

Por mais improvável que pudesse parecer (e a impiedosa vida real é repleta de ocorrências tão terríveis quanto improváveis), Honka obtinha vítimas com relativa facilidade e incontornável impunidade: Seu local de caça era o Bar Luva Dourada, no subúrbio de St. Pauli, que ele frequentava junto de outros homens igualmente asquerosos e sujos. Lá, Honka encontrava mulheres desiludidas o suficiente para acompanhá-lo até sua fétida morada.

Eram mendigas, idosas, sobreviventes do holocausto, muitas delas alcóolatras e prostitutas.

Honka tentava relacionar-se com elas, no entanto, impotente, terminava sempre fazendo delas o pivô de sua insaciável frustração.

Uma delas, vivida por Margarethe Tiesel, consegue ficar morando com ele durante alguns dias (protelando sua raiva com a promessa um tanto vazia de que trará sua filha para fazer-lhes companhia), contudo, quando a sanha e a injúria de Honka já estavam prestes a culminar na combinação mortal que sempre resultava em assassinato, ela tem a sorte de escapar com um outro pretendente de última hora.

Há um certo ponto do filme em que Honka até busca afastar-se de seus instintos homicidas. Ele deixe de frequentar o Luva Dourada. Ele arruma um emprego (de vigia noturno). E para de beber. As mortes cessam por um tempo. Entretanto, quando Honka conhece um casal de nômades boêmios que passa a usar seu posto como ponto de encontro para bebedeiras (e acaba se apaixonando pela mulher), sua fúria retorna.

Há, na narrativa de Akin, uma personagem quase paralela à Honka, uma jovem (interpretada pela bela Greta Sophie Schmidt), que o filme nos parece sugerir que será uma das vítimas do assassino –inclusive protagonizando alguns devaneios dele, onde aparece comendo a carne crua de um açougue! –ela é a única personagem de todo o longa-metragem a ser mostrada como incondicionalmente bela, a única a qual é resguardada uma aura de fascínio cinematográfico de fato em oposição à podridão que a cerca –a progressão natural da aproximação entre ela e Honka é um dos pontos de crescente tensão desta obra profundamente incômoda e desconfortável.

“Der Goldene Handschuh” retrata assim as consequências sociais e emocionais flagradas em uma Alemanha devastada pela derrota em duas Guerras Mundias, ao mesmo tempo em que presta tributo a um cinema de predisposições sensoriais que aflorou nos anos 1970, na intenção de retratar essa mesma desilusão, essa mesma falta de propósito –não por acaso, a obra de Akin lembra simultaneamente os cult-movies, “A Ternura dos Lobos”, de Ulli Lommel (do qual Rainer Werner Fassbinder se incumbiu da montagem), lançado em 1973, e “M-O Vampiro de Düsseldorf”, de Fritz Lang, de 1931.

sábado, 16 de agosto de 2025

...E Deus Criou A Mulher


 Em 1988, o diretor francês Roger Vadim teve a ideia de realizar uma refilmagem norte-americana de seu cultuado “...E Deus Criou A Mulher” original, estrelada por sua esposa na época, Brigite Bardot. Agora estrelado por Rebecca de Mornay (atriz que habitava o subconsciente coletivo do público masculino graças ao seu papel em “Negócio Arriscado”), este novo “...E Deus Criou A Mulher” terminou se revelando um filme completamente diferente de seu antecessor.

Rebecca interpreta Robin Shay, protagonista que –diferente da quase ingenuidade de Bardot no outro filme –nos é apresentada como uma presidiária (!) na iminência de perpetrar uma fuga da cadeia (!!). Tal fuga (filmada de maneira à evidenciar certo charme gaiato almejado pela produção) não se revela muito eficaz: Ainda na estrada, Shay pega carona na limusine de James Tierman (Frank Langella, pouco convincente em sua fleuma e charme), figurão envolvido com política que, ao dar-se pelo esquecimento de uma pasta, pede ao motorista que dê meia volta e retorne ao local em que estavam –esse local, para azar de Robin, vem a ser a própria penitenciária (!!!). Tierman dá a ela uma chance para que retorne, às escondidas, para sua cela e esqueça essa ideia de fugir.

Dessa forma, Robin acaba num ginásio em obras da penitenciária (ou algo assim) e, num encontro inesperado, desta vez com o carpinteiro Billy Moran (Vincent Spano, de “Oscar-Minha Filha Quer Casar”), ela acaba fazendo sexo (!!!) –e a condução um tanto enfadonha imposta pela direção só não despenca totalmente para o tédio exatamente por conta desses lances non-senses, e por isso mesmo imprevisíveis, ocasionados no roteiro que, de um modo ou de outro, persistirão até o final.

Descobrindo que Tierman está concorrendo à eleição para governador no estado do Novo México, Robin pede a ele um auxílio: Ela irá se comportar e até mesmo providenciar um matrimônio de última hora –com o inadvertido Billy! –desde que Tierman mexa os pauzinhos para tirá-la da prisão, aproveitando ainda para fazer da manchete de sua saída uma história de redenção que ajude a impulsionar sua candidatura.

Assim, aos trancos e barrancos e sem muita certeza do rumo a ser tomado, “...E Deus Criou A Mulher” estabelece esse estranho triângulo amoroso entre Robin, Billy e Tierman, que nunca leva a lugar nenhum (com os dois homens parecendo disputar qual o mais irritante e machista). Robin vai morar na casa de Billy, junto do irmão e do filho pequeno dele, sob as condições de um acordo: Por cerca de seis meses (tempo mais que suficiente para Tierman se eleger e para a liberdade condicional dela expirar), Robin irá se passar por sua esposa e, ao fim desse período, irá recompensá-lo com 5 mil dólares que ela tinha no banco.

Ao contrário do que inicialmente Billy tinha imaginado, porém, ele e Robin não terão qualquer relação carnal –ela não quer envolver negócios com prazeres...

Isso, obviamente, acirra os nervos de Billy, enquanto lida com isso (e com as responsabilidades da vida doméstica que aquele período em família irá lhe cobrar) Robin tenta refazer sua antiga banda e dar continuidade ao talento para música que ela demonstrava antes de ir presa.

Ao abrir mão de uma trama mais similar ao filme de 1956 –um romance mais básico e sem maiores distinções –o diretor Vadim acabou concebendo uma obra carregada de estranhos maneirismos. O aspecto musical que tenta acompanhar o estado de espírito desta sua nova protagonista não tem qualquer encaixe harmonioso com o restante do enredo, e as canções padecem de uma lastimável falta de inspiração –e a própria Rebecca De Mornay parece pouco à vontade nas cenas em que precisa exercitar suas cordas vocais. Por outro lado, o aspecto sensual, quando aparece, é bem aproveitado no registro de um sex-appeal mais selvagem de sua protagonista e nas cenas desinibidas de nudez que ela entrega.

Longe de representar o mesmo marco de sensualidade que a produção francesa estabeleceu (na verdade, há quem sequer saiba da existência desta refilmagem!), este “...E Deus Criou A Mulher” norte-americano, na sua tentativa de evocar alguma lubricidade sexual e maliciosa que reverberasse no imaginário do público tanto quanto o original, acabou ficando à sombra de muitas obras abundantes em erotismo e sensualidade que despontaram naqueles anos 1980, como “O Último Americano Virgem”, “9 e ½ Semanas de Amor” e outros.

domingo, 10 de agosto de 2025

Extermínio - A Evolução


 Lançado em 2002, “Extermínio” representou algumas notáveis inovações, das quais hoje poucos o creditam –além de capitanear toda uma nova leva de filmes sobre mortos-vivos que seguem sendo feitos até hoje (ainda que os ‘mortos-vivos’ aqui sejam ‘infectados’), também foi uma das audaciosas produções a adotar a técnica da câmera digital que proporcionava às filmagens uma praticidade e uma rapidez que encontrou reflexo na criatividade e na urgência daqueles realizadores de então –e ainda foi incluído na Lista dos 100 Melhores Filmes da Década (do ano 2000 à 2010) feita pela Revista Time.

À ele seguiu-se, em 2007, uma continuação, intitulada “28 Weeks Later” –em alusão ao título original, “28 Days Later”, ou “28 Dias Depois” –não tão boa quanto, mas igualmente vibrante, interessante e certamente acima da média.

Quando muitos já achavam que a franquia não tinha mais o que oferecer, eis que o roteirista Alex Garland e o diretor Danny Boyle (que, durante esse meio-tempo ganhou 8 Oscars por “Quem Quer Ser Um Milionário?”) apareceram com este “28 Years Later” que, como o título original já diz, passa-se, num audacioso salto de tempo, vinte e oito anos depois do início da infecção ocorrida no primeiro filme –os infectados (vítimas de uma contaminação em laboratório) se proliferaram por todo o Reino Unido levando o lugar a ficar isolado do resto do mundo. Entretanto, nessas condições, as comunidades persistentes afloraram; como aquela que é retratada no filme: Um lugarejo localizado numa ilha, cujo acesso ao continente se dá por uma faixa de terra de poucos quilômetros que, durante algumas horas ao dia, se torna trafegável graças à maré baixa.

É numa dessa ocasiões que o jovem Spike (Alfie Williams), ladeado por seu pai, o rígido Jamie (Aaron Taylor Johnson), irá encarar sua primeira incursão no continente, logo, seu primeiro encontro com os temidos infectados que, nesse estágio de contaminação, já nem usam mais roupas e, ainda por cima dividem-se em duas aparentes categorias; uma, chamada ‘rastejantes’, em que são desajeitados e não conseguem andar (ainda que continuem potencialmente perigosos); e outra, os já conhecidos infectados, selvagens e implacáveis, que correm feito maratonistas atrás de suas vítimas. É entre eles que os mais desavisados podem encontrar os Alfas, infectados cujo vírus atua em seu organismo como anabolizantes, deixando-s enormes, fortes e musculosos, incapazes de serem mortos apenas pelas habituais fechas no corpo ou na cabeça.

Não basta à Spike ir uma única vez para o continente e escapar de lá por muito pouco –ele quer voltar para levar para lá sua mãe (Jodie Comer, de “Star Wars-A Ascensão Skywalker”). Acometida de algum mal que ninguém na aldeia é capaz de curar ou tratar, Spike almeja encontrar em algum lugar daquele mundo desolado, o excêntrico Dr. Kelson (Ralph Fiennes, cada vez mais sensacional), um médico especialista que afastou-se das pessoas e passou a desenvolver um comportamento, no mínimo, incomum. Com seus conhecimentos, e apesar de tudo, Spike sabe que o Dr. Kelson pode dizer qual é o problema com sua mãe –ainda que, no encalço de todos, esteja um dos temidos Alfas!

O roteiro e a direção inspirados de Garland e de Boyle provam, ao longo de todo este “A Evolução”, que eles têm ideias de sobra para ilustrar esse desigual mundo pós-apocalíptico que eles criaram para ambientar sua saga –tanto que, um outro filme, a continuar exatamente do ponto em que este abruptamente se interrompe, já está nos planos de ser lançado.

Realmente, essa sensação de ser demasiado enxuto, de possuir mais história para ser contada, e de se encerrar num momento em que nada parece se encerrar de fato (quando o roteiro enfim estabelece uma relação com o prólogo que, até então, pouco sentido havia feito) é uma das poucas ressalvas que se leva deste filme eletrizante, tenso, divertido e algo escatológico.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Quarteto Fantástico - Primeiros Passos


 Criado nos quadrinhos pela dupla Stan Lee e Jack Kirby nos anos 1960, o Quarteto Fantástico já teve quatro versões anteriores feitas para cinema –a de 1994 (uma produção B cuja pobreza técnica e artística foi tamanha que sequer foi lançado!), a de 2005 (talvez, a mais famosa, que trazia Chris Evans como Tocha Humana), sua continuação de 2007 (aproveitando também o arco narrativo a envolver Galactus e o Surfista Prateado, resultando nada mais que uma sessão da tarde mediana) e a de 2015 (uma obra problemática, assolada por todo o tipo de equívoco e, como é habitual em casos assim, uma verdadeira lástima).

Faltava, em cada um desses exemplares, alguém atrás das câmeras que fizesse um esforço mínimo para entender os quadrinhos originais, a motivação dos personagens, o propósito e o contexto para o qual foram criados. Felizmente, a Marvel Studios (enfim, detentora desses personagens após um tortuoso vai e vem de direitos autorais) entregou o material nas mãos do diretor Matt Shakman (realizador de todos os episódios da elogiada série “WandaVision”) que soube pontuar os elementos pertinentes de cada membro do grupo, encontrou o empuxo moral e existencial que dava impulso às suas tramas, e organizou essas considerações numa narrativa bem calibrada, sólida e enxuta, além de adornar seu trabalho com um visual de encher os olhos, aproveitando a estética sci-fi retrô escolhida para a produção.

Numa versão alternativa do planeta Terra (chamada Terra 828, alternativa inclusive ao próprio Universo Marvel em si, cujas obras de sucedem noutra realidade), o mundo chegou à década de 1960 usufruindo de uma plenitude tecnológica fora do comum, graças à existência de um gênio conhecido como Reed Richards (Pedro Pascal). Esse mesmo Reed Richards que, numa eventual viagem espacial (são anos 1960, logo, período da Exploração Espacial) junto de sua tripulação, formada pela esposa Sue Storm (Vanessa Kirby), pelo cunhado Johnny Storm (Joseph Quinn, de “Um Lugar Silencioso-Dia Um” e “Gladiador II”) e pelo amigo Ben Grimm (Ebon Moss-Bachrach, de “Que Horas EuTe Pego?” e da série “The Bear”), acaba colhido por raios espaciais que conferem à todos eles, poderes diferenciados. Reed, agora, além da mente privilegiada, tem também a capacidade de se esticar; Sue consegue produzir poderosos campos de força, além de ficar invisível; Johnny controla o fogo podendo inclusive tornar o próprio corpo incandescente; e Ben vira um ser rochoso superforte ao qual dão a alcunha de Coisa. Essa família se transforma assim nos grandes heróis da Terra, o Quarteto Fantástico.

Quando a trama tem, de fato, início –mostrando essa origem mencionada acima numa breve sequência de um programa de TV –o Quarteto Fantástico testemunha a chegada à Terra da Surfista Prateada (Julia Garner, de “Sin City-A Dama Fatal”), criatura de poder cósmico que afirma ser arauto do poderoso Galactus, um ser tão antigo quanto o universo, movido por uma fome incontrolável e incessante. O seu alimento: Planetas! E chegou a hora dele alimentar-se da Terra.

A Surfista vem, portanto, anunciar para o Quarteto e para o mundo o prazo final da raça humana.

As esperanças se debruçam, obviamente, sobre os quatro membros do Quarteto Fantástico, contudo, quando finalmente eles encontram o incomensurável Galactus (vivido numa imponência assombrosa por Ralph Ineson), ele os confronta com um dilema: Salvar a Terra entregando a ele o filho de Sue e Reed, ainda por nascer.

Ainda que, de longe, a produção mais visualmente arrebatadora e fascinante a adaptar o Quarteto Fantástico para as telonas, o grande trunfo do filme é mesmo seus acertos no roteiro e no elenco: Hábil no manejo dramático de sua trama, o diretor Shakman conseguiu desenvolver de modo satisfatório não só cada um dos membros do grupo como também estabeleceu instigantes e eficientes dinâmicas entre cada um deles e a personagem da Surfista Prateada. Como nas HQs, portanto, “Quarteto Fantástico-Primeiros Passos” vale-se de pertinentes expedientes da ficção científica para enfatizar os laços familiares que unem seus personagens, centralizando assim a personagem vivida brilhantemente por Vanessa Kirby (ela que –veja só! –é neta do próprio Jack Kirby!) no cerne da narrativa, à exemplo do que Shakman já havia também feito em “WandaVision” com a personagem da ótima Elisabeth Olsen –a mulher, esposa e mãe, tornada assim o pilar emocional de toda a união conjunta de um grupo.

sábado, 2 de agosto de 2025

The Blair Witch Documentary


 Se há algo de extrema utilidade, para os estudiosos de cinema que tentam compreender como um filme gera burburinho entre a crítica e, sobretudo, o público, neste documentário sobre as preparações e as filmagens do hoje lendário “A Bruxa da Blair”, é a forma despojada com que ele expõe as manobras quase instintivas, muitas ao sabor dos improvisos ou da própria sorte, que conduziram ao inesperado sucesso que essa produção independente obteve em 1999.

Foi por volta de 1994 que os então amigos Daniel Myrick e Eduardo Sánchez (ambos colegas na Escola de Cinema da Universidade da Flórida Central) tiveram a ideia de fazer um filme básico, árido e precário usando todas essas circunstâncias limitantes como trunfos dentro da estrutura do gênero terror –eles haviam assistido “A Hora do Pesadelo”, de Wes Craven (de 1984), e se deram conta do quanto defasado, banalizado e despido de originalidade o gênero se encontrava nos anos 1990. Buscando inspiração no conceito documental aproveitado episódio após episódio em séries televisivas policiais de caráter mais sensacionalista, eles inseriram o elemento sobrenatural nessa ideia, concebendo o projeto para um filme de terror que, à sua maneira, soasse tão legítimo que despertaria, no público, a dúvida se todos os eventos mostrados seriam, ou não, reais, auxiliados pelo fato de que, naquela segunda metade dos anos 1990, os expectadores ainda não dispunham de uma internet tão vasta em informações e em ferramentas de busca capazes de elucidar imediatamente uma dúvida como essa.

Foi assim que, financiado pelos próprios diretores e por alguns poucos investidores, “A Bruxa de Blair” –ou “The Blair Witch Project” –começou a ser rodado em 1997, nas imediações florestais da cidade de Burkstville, no estado de Maryland. Durante as audições realizadas para encontrar os intérpretes dos únicos três personagens principais, a maior exigência para os papéis eram pessoas que não tivessem problemas em acampar à noite, e que conseguissem lidar bem com o frio, a privação de sono e o desconforto.

Foram selecionados –em audições transcorridas em Los Angeles, Nova York e Orlando –os atores Joshua Leonard, Michael C. Williams e a protagonista Heather Donahue, e deixados cientes de que, quando as câmeras começassem a rodar, ele entrariam nos personagens e deles não sairiam mais; tanto que os personagens do filme levaram o nome dos próprios atores que os interpretam.

Rodado ao longo de oito dias bastante exaustivos e aflitivos para os membros do elenco (que infelizmente não comparecem prestando seus depoimentos ao filme), o processo de filmagem foi desigual e inesperado com os atores extraviados na floresta, filmando a si próprios, sem ter ideia da orientação das cenas e com os diretores e a diminuta equipe técnica rondando-os e criando, a cada noite, novas situações para lhes arrancar expressões de medo real.

Contudo, foi durante a divulgação –de um caráter pioneiro e inovador –que o filme viralizou e mostrou-se realmente diabólico: No documentário, Myrick e Sánchez revelam que valeram-se da internet justamente para passar ao público a percepção de que todo o filme era real, resultado de materiais encontrados numa cabana um ano após o desaparecimento do trio de jovens documentaristas. Foi criado um site para o filme, abastecido de matérias sobre o desaparecimento fictício e de um histórico onde todo um quadro cronológico era contado sobre a Maldição da Bruxa de Blair, em Burkstville, que remontava desde o século retrasado. Certamente, vítimas de maus-tratos durante as filmagens, os três atores protagonistas foram até proibidos de aparecer em redes sociais após o lançamento do filme, para que a ideia de seu desaparecimento se consolidasse –num princípio básico muito parecido com o usado também no execrante “Cannibal Holocausto”, nos anos 1970.

Dirigido por Jed Shepherd, este documentário está incluso nos extras da Edição de Colecionador do Blu-Ray norte-americano de “A Bruxa de Blair”, e revela o ímpeto de inovação dos diretores Myrick e Sánchez (que se anteciparam a qualquer hype filmando meticulosamente todo o processo), além de mostrar como essa produção modesta, pequena e barata foi capaz de revolucionar alguns conceitos mercadológicos em Hollywood instaurando a linguagem do found footage –que, depois, desdobrou-se numa infinidade de outros filmes, todos querendo pegar carona na mesma ideia, como “Cloverfield-Monstro”, “The Poughkeepsie Tapes” “Caçador de Troll” e tantos outros.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Entrevista Com O Vampiro - 2ª Temporada


 A primeira temporada de “Entrevista Com O Vampiro” se encerrou exatamente no ponto da trama em que o vampiro Louis de Point du Lac (Jacob Anderson, espetacular), junto da menina-vampira Claudia (interpretada na 1ª temporada por Bailey Bass e, aqui, nesta 2ª, por Delainey Hayles, ambas formidáveis) finalmente põem em prática seu plano de dar cabo do poderoso vampiro Lestat (Sam Reid, também ele magnífico) –para efeitos de comparação, representa cerca de 60% do filme “Entrevista Com O Vampiro”, de 1994, que assim como esta série produzida por Rolin Jones busca adaptar as “Crônicas Vampirescas”, da celebrada escritora Anne Rice, das quais este é só o primeiro volume.

Pela extensão assim possibilitada do material televisivo (oferecendo chance para que o livro em sua totalidade e muito mais seja vertido para a tela) e pelo talento inconteste dos envolvidos a frente e atrás das câmeras, o objetivo de enfim consolidar uma adaptação integral da obra de Anne Rice nunca chegou tão perto de virar realidade.

A começar esta 2ª temporada, temos Louis e Claudia, logo após o assassinato de Lestat (o qual o roteiro não se furta em antecipar a informação de que não morreu de fato), partindo em definitivo de Nova Orleans, ainda na primeira metade do Século XX, e seguindo rumo à Europa a fim de iniciar investigações de Louis, desejoso de saber onde estão e quais são os outros vampiros a caminhar pelo mundo –até então, ele e Claudia só conheciam Lestat mesmo, seu criador.

Assolada pela Segunda Guerra Mundial, a Europa é um lugar desolado, triste e lúgubre, e essa atmosfera (bem como o sangue das vítimas afetadas das quais vão se alimentando) vai contaminando com essa angústia os dois personagens. De vampiros mesmos, eles descobrem apenas murmúrios de lendas obscuras e, numa floresta afastada, alguns personagens tão obtusos, monstruosos e inexpressivos que sequer oferecem respostas para suas perguntas. As coisas só começam a mudar quando os dois chegam em Paris e, numa das apresentações noturnas do Théâtre des Vampires, regido pelo dândi Armand (Assad Zaman), e habitado por uma horda de chupadores de sangue, entre os quais o insidioso Santiago (Ben Daniels, de “Rogue One-Uma História Star Wars”), Louis e Claudia pensam enfim terem encontrado os seus. Um microcosmos onde acharão, enfim, pertencimento.

Porém, nada mais é que uma cilada: Ainda que Louis e Armand logo se tornem amantes, a regra primordial entre os vampiros é aquela segundo a qual um vampiro está proibido de matar outro vampiro. E tendo Louis e Claudia infligido tal regra, o seu destino corre o risco de ser selado tão logo os outros venham a descobrir seu segredo.

Durante todo esse relato, pontuado de detalhes preciosos, somos testemunhas de uma entrevista ocorrida no presente (na verdade, durante a pandemia, meados de 2020/2021, época em que a série foi lançada nos EUA), na qual Louis, mais tarde, ladeado por Armand, conta todos esses percalços de sua existência vampira ao contundente repórter Daniel Malloy (Eric Bogosian, de “Verdades Que Matam”) que, valendo-se de sua aguçada percepção investigativa, vai encontrando fissuras, contradições, enganos e até segredos não revelados na trama que as memórias de Louis vão descortinando.

Aproveitando brilhantemente a mudança de ambientação (e, por que não, de tom, também) entre a primeira e a segunda parte do livro, a série de TV amplia seu escopo, multiplica o números de personagens, e aumenta as apostas nos quesitos suspense e intrigas para trazer uma fantástica sucessão de episódios ao expectador. Mais do que adaptar a rica obra de Anne Rice, a série a expande, acrescentando novas camadas, incrementando dinâmicas e situações com ainda mais elementos e ideias, esbanjando inventividade em cima de um material já fascinante por si só.

A um só tempo comovente, eletrizante, sensual e instigante, “Entrevista Com O Vampiro”, a série, encerra a adaptação deste livro inicial da saga abrindo espaço para a 3ª temporada, onde certamente será adaptado “Lestat, O Vampiro”, trazendo o protagonismo para o personagem magistralmente interpretado por Sam Reid o qual, a despeito de ser virtualmente ausente durante a maior parte do enredo desta 2ª temporada, os produtores, ainda assim, encontraram meios de fazê-lo aparecer em quase todos os episódios (seja em flashbacks, deste ou daquele personagem; seja em subterfúgios inesperados do roteiro, ou particularmente, num episódio emocionante, na breve cena da leitura de uma carta). Tributo merecido a uma das melhores presenças da série.

sábado, 26 de julho de 2025

10 Anos de Ato Cinematográfico


 Eis que este blog completa hoje, neste dia 26 de Julho de 2025, uma década de existência quando, há dez anos atrás, eu iniciei este espaço com a resenha de “Jurassic World”. Foram dez anos cheios de transformações. Escrevi alguns livros. Li outros tantos. Saí de um emprego de quinze anos e arrumei outro –onde espero permanecer por muito tempo. E assisti filmes. Muitos filmes.

É possível observar um panorama desigual do cinema moderno durante esses dez anos em que, até aqui, o Ato Cinematográfico existiu: Entre 2015 e 2025, a indústria cinematográfica sofreu reviravoltas inesperadas. As antigas videolocadoras rapidamente viraram histórias de museu (com sua história contada no maravilhoso documentário “Cinemagia”), substituídas pelo avanço implacável das plataformas de streaming; A Marvel Studios experimentou seu auge (com “Vingadores-Ultimato”) e hoje luta para evitar o próprio declínio (com fracassos como “As Marvels”); Grandes diretores como Denis Villeneuve se sagraram com obras antológicas (“A Chegada”, depois “Blade Runner 2049” para então nos entregar os magníficos “Duna-Parte1” e “Duna-Parte 2”); Christopher Nolan alcançou sua aclamação com “Oppenheimer”; Franquias encontraram seu final (“Star Wars-A Ascensão Skywalker”), enquanto outras despontaram para novas jornadas (“The Batman” ou “Mad Max-Estrada da Fúria”). Perdemos Hector Babenco (“O Beijo da Mulher-Aranha”), David Bowie (“Labirinto-A Magia do Tempo”), Bernardo Bertolucci (“O Céu Que Nos Protege”), William Hurt (“Viagens Alucinantes”), José Mojica Marins, Andrzej Zulawski (“Possessão”), Cacá Diegues (“Bye Bye Brasil”), David Lynch (“O Homem Elefante”) e tantos outros; Entretanto, “ganhamos” Damien Chazelle (“Babilônia”), Edward Berger (“Conclave”), Sydney Sweeney (“Os Observadores”), Coralie Fargeat (“A Substância”); Florence Pugh ("Lady Macbeth"), Glen Powell (“Assassino Por Acaso”), Timothé Chamalet (“Me Chame Pelo Seu Nome”), Ryan Coogler (“Pecadores”) e Sean Baker (“Anora”); o Brasil finalmente ganhou um Oscar de Melhor Filme Internacional (“Ainda Estou Aqui”); como sempre o cinema se adaptou às novas tecnologias, atravessou uma pandemia para tirar as pessoas de dentro de suas casas com “Homem-Aranha Sem Volta Para Casa”, e segue passando por tendências, constantes reinvenções e refletindo o tempo e o mundo à sua volta.

Foi uma jornada e tanto –que venham as próximas décadas!